Anselmo Borges |
"Na Coreia do Norte, em 1950, viviam ainda mais de 55 mil católicos, com 57 igrejas construídas, com missionários, escolas católicas e actividades pastorais florescentes. A perseguição tinha começado antes, mas acentuou-se com a guerra da Coreia e o brutal regime instalado: as igrejas foram arrasadas, os cristãos, católicos e protestantes, mortos ou enviados para campos de concentração, num processo de eliminação de qualquer presença religiosa."
A notícia chegou completamente inesperada e surpreendente: o presidente da Coreia do Sul, Moon Jae-in, será portador de um convite formal do presidente Kim Jong-un ao Papa Francisco para que visite o seu país, a Coreia do Norte. E está preparado para recebê-lo em Pyongyang "com entusiasmo".
A Coreia do Norte ocupa hoje o primeiro lugar na lista dos países onde os cristãos são mais perseguidos. Nos princípios do século XX, a capital, Pyongyang, foi chamada "a Jerusalém do Oriente" ou "a Jerusalém da Ásia". Na Coreia do Norte, em 1950, viviam ainda mais de 55 mil católicos, com 57 igrejas construídas, com missionários, escolas católicas e actividades pastorais florescentes. A perseguição tinha começado antes, mas acentuou-se com a guerra da Coreia e o brutal regime instalado: as igrejas foram arrasadas, os cristãos, católicos e protestantes, mortos ou enviados para campos de concentração, num processo de eliminação de qualquer presença religiosa. As comunidades católicas tornaram-se verdadeiramente a "Igreja do silêncio". Hoje existe apenas uma igreja católica, construída em 1988, mas sem padre nem religiosos nem baptismos. Na capital, os católicos serão uns 800 e, dispersos por toda a Coreia do Norte, uns dois ou três mil; no entanto, é convicção de padres do Sul, que estiveram no Norte, que o número pode ser muito superior: haverá muitos homens e mulheres que continuam a viver a sua fé em Cristo de modo íntimo, sem possibilidade de exprimi-la publicamente. O regime é ateu, mas, a partir de 1989, com a queda do bloco comunista, reconheceu uma Associação Católica e uma Federação Cristã, que são duramente enquadradas e controladas pelo governo. Alguns contactos informais têm tido lugar em Roma entre representantes norte-coreanos e diplomatas do Vaticano, revela o jornal La Croix, que também escreve que em 2017 um diplomata norte-coreano declarou expressamente a um seu enviado especial à Coreia do Norte que "as organizações humanitárias católicas faziam um trabalho muito bom na Coreia do Norte; são sérias, eficazes e nós confiamos, pois são mais honestas e sinceras do que outras grandes organizações laicas que nos enviam espiões".
Como reagirá o Papa Francisco ao convite? Ele vai receber no próximo dia 18 o presidente sul-coreano, Moon Jae-in, um católico fervoroso, que lhe entregará o convite oficial do líder norte-coreano. Nesse dia, o secretário de Estado do Vaticano, cardeal Pietro Parolin, um diplomata reconhecido e prestigiado internacionalmente, celebrará uma missa na Basílica de São Pedro pela "Paz na Península Coreana", na qual participará o presidente Moon.
Possivelmente o presidente sul-coreano, Moon Jae-in, é o grande artífice da presente situação cada vez mais distendida na Península Coreana, no quadro de uma nova ordem, que poderia estar inclusivamente a caminho de uma união entre as duas Coreias; para um dos encontros intercoreanos convidou também o presidente da Conferência Episcopal Coreana, que esteve presente. O convite do líder norte-coreano ao Papa surge no contexto dessa reconfiguração geoestratégica, estando previsto que Kim Jong-un visite Seul, visitando também proximamente Moscovo, ao mesmo tempo que se espera uma visita do presidente chinês, Xi-Jinping, a Pyongyang, e outro encontro entre Kim e Donald Trump poderá acontecer em breve. Por outro lado, Kim, que é sabido ser um ditador cruel e que poderia correr o risco de uma sublevação por parte da população esfomeada, quererá mudar a sua imagem, agora uma imagem de homem pacífico; e que solução melhor para isso do que o convite a Francisco, líder político-moral global e símbolo do combate a favor do diálogo e da paz?
E se Francisco fosse visto em Pyongyang? Ele visitou a Coreia do Sul em Agosto de 2014. Aquando da cimeira histórica entre Trump e Kim a 12 de Junho passado em Singapura repetiu os vários apelos que tem feito a favor da paz entre as duas Coreias. O cardeal Andrew Yeom Soo-Jung, arcebispo de Seul, declarou a propósito do convite: "Dá-me satisfação e conforta-me saber que, durante a sua visita ao Vaticano na próxima semana, o presidente Moon Jae-in levará consigo a mensagem do líder norte-coreano Kim Jong-un, que deseja convidar o Papa Francisco para Pyongyang. O Santo Padre preocupou-se sempre e preocupa-se com a paz na Península Coreana e incluiu nas suas orações os coreanos sempre que houve acontecimentos importantes na história recente. Espero que estes esforços ajudem a construir uma paz genuína na península da Coreia. Sobretudo como administrador apostólico de Pyongyang, rezo sinceramente para que em breve possamos enviar sacerdotes e religiosos e religiosas para o Norte e celebrar juntos os sacramentos."
Francisco tem a convicção de que o futuro do cristianismo se joga em grande parte na Ásia. Está prevista uma viagem sua ao Japão no próximo ano e não se deverá esquecer que este convite vem também na sequência do acordo de 22 de Setembro passado entre o Vaticano e Pequim sobre a nomeação em conjunto dos bispos da República Popular da China. Este acordo será o tema da minha próxima crónica.
Anselmo Borges, no Diário de Notícias
Padre e professor de Filosofia. Escreve de acordo com a antiga ortografia.