domingo, 21 de outubro de 2018

Balanço do Colóquio Rostos Dominicanos (1)

Bento Domingues
 
1. Não foram poucas as pessoas que quiseram saber por que razão não tinha publicado a crónica no passado Domingo. Vou explicar, mas começando mais atrás. Continuam a perguntar-me porque acrescento, à minha assinatura, OP. É uma longa história. Podia dizer simplesmente dominicano, pois pertenço a uma Ordem religiosa, fundada no século XIII, em França, por S. Domingos de Gusmão. Ele, porém, não queria fundar dominicanos, mas uma Ordem de Irmãos cuja missão, na Igreja, seria a pregação que a primeira Ordem dos Pregadores – a dos Bispos – tinha abandonado. Domingos não pretendia que o reproduzissem, mas que inventassem, em todos os tempos e lugares, os modos de partilhar a palavra do Evangelho da alegria. Os membros da Ordem não vivem para reproduzir a fisionomia do seu Fundador, mas para assumir o rosto das urgências da evangelização, em cada época. Não foi por acaso que o célebre pintor Matisse o apresentou sem a figuração do rosto. 
Esta missão exigiu, desde o começo, o casamento do estudo com o anúncio e a reinterpretação contínua do Evangelho. Dessa ligação nasceu a teologia em diálogo com a cultura, elaborada de forma exemplar por Santo Alberto Magno e S. Tomás de Aquino. Da mesma raiz brotou a mística do infinito desassossego do Mestre Eckhart e o ardor da reforma da Igreja, com Santa Catarina de Sena. Da pregação incarnada no tempo e lugar irrompeu uma das páginas mais belas da história da humanidade com o Sermão de António de Montesinos. O seu grito contra a exploração dos índios transformou-se numa aliança de investigações e intervenção contínua entre Bartolomeu de Las Casas, a Escola de Salamanca representada por Francisco de Vitória: por direito natural, os índios são os verdadeiros senhores das suas terras e das suas riquezas. A nenhum título, nem o Papa nem o Rei de Espanha os podem privar desse direito! [1] 
Não se julgue que essa efervescência filosófica e teológica esquecia a cristologia narrativa do povo iletrado: a distribuição das cenas evangélicas, pelos mistérios do Rosário, alimentou o povo católico por todos os continentes. Em nome da liberdade – uma Igreja livre num Estado livre –, Henri Lacordaire, nos finais do século XIX, restaurou a Ordem dos Pregadores, em França. A sua lucidez teve uma fecundidade espantosa, no século XX, preparando, numa história atribulada e criativa, muitas das inovações do Vaticano II. 

2. Esta rápida evocação atraiçoa a complexidade de uma longa história. Passados 800 anos e com presença em todo o mundo, a Ordem dos Pregadores, autorizada por Inocêncio III, em 1215, confirmada por Honório III, em 22 de Dezembro de 1216, e reforçada pela bula Gratiarum omnium, de 21 de Janeiro de 1217, sentiu a necessidade de fazer um balanço histórico, de tão longo percurso, feito de fidelidades e traições ao seu projecto. 
Esta Ordem terá chegado a Portugal entre os anos de 1220 e 1222. Frei Luís de Sousa antecipa a presença dos primeiros pregadores em Portugal para 1217, associando-a à figura de Frei Soeiro Gomes e ao Convento de Montejunto. 
Em 2016, para o estudo desses 800 anos dominicanos, uma Comissão constituída por elementos do Instituto S. Tomás de Aquino (ISTA) e do Centro de Estudos de História Religiosa (CEHR) desenvolveu em três lugares, três Jornadas com três temas de fundo: História, Memória, Património; Discursos, Teologia, Espiritualidade; Espaços, Homens, Percursos [2]. 

3. Na passada semana, de 9 a 11, realizou-se, no Palácio Fronteira e no Convento de S. Domingos, outro Colóquio muito original: Rastos Dominicanos. De Portugal para o Mundo. 600 anos da Província Portuguesa, com 26 conferências e uma visita guiada ao Convento de S. Domingos de Benfica e à actual Igreja de Nossa Senhora do Rosário. 
Eu não podia perder esta ocasião para me aproximar do mundo imenso que desconhecia. 
No final, Cristina Costa Gomes, em nome do ISTA e do CEHR, fez o balanço sintético deste espantoso colóquio. Remeteu-nos, em primeiro lugar, para a sua dimensão, não só em termos de número de conferências, mas principalmente da multiplicidade de áreas temáticas abrangidas, desde a História, à Arte, à Literatura, à Espiritualidade, à Teologia, à Pedagogia e Didáctica até à Missionação e Semiótica/Textualidade. 
Os conferencistas vieram de diferentes universidades do país (Lisboa, Coimbra, Porto, Évora, Minho) e de diferentes centros de investigação e academias. Trouxeram abordagens distintas, linhas de investigação recentes e em aberto, com dados inéditos e novas problemáticas. 
Podemos destacar como grandes linhas temáticas do Colóquio: os Dominicanos e as fundações Dominicanas femininas durante a Idade Média; os Dominicanos no período Moderno: espiritualidade e poesia feminina e grandes vultos dominicanos da Cultura Portuguesa do Renascimento, nomeadamente Frei Fernando de Oliveira, Frei Jorge de Santiago, Frei Luís de Sottomaior e Frei Bartolomeu Ferreira; a missionação Dominicana na África do Sudeste e na Ásia. Neste campo, em particular, questionou-se a importância dos percursos pessoais de Frei João dos Santos, Frei Gaspar da Cruz, Frei Silvestre de Azevedo e Frei Miguel de Bulhões e Sousa. 
A arte acrescentou-se a estes tópicos com abordagens inéditas e propostas de diálogo entre a pintura, a arquitectura e a escultura. Desde as pinturas de Luís de Morales, às fachadas das Casas Dominicanas, no contexto da arquitectura quinhentista e seiscentista, problematizou-se a articulação entre a arte e a espiritualidade coeva. 
Temas contemporâneos permitiram-nos viajar por questões como a pedagogia de Teresa de Saldanha, a edição da Revista Concillium (1965-1966) e a participação dos Dominicanos Fr. Mateus Peres, Fr. Raimundo de Oliveira e Fr. Bento Domingues nesta publicação, assim como a missionação dominicana no Brasil e experiências missionárias em Moçambique e no Peru. 
Estes dias de trabalho levantaram novas problemáticas sobre o que falta fazer e que não cabem nesta crónica. Terei de voltar a esse desafio. 

Frei Bento Domingues no PÚBLICO

[1] António de Montesinos, O.P.; Bartolomeu de las Casas, O.P.; Francisco de Vitória, O.P., E estes não serão homens?, Ed. Tenacitas, Coimbra, 2014
[2] António Camões Gouveia, José Nunes, OP, Paulo F. de Oliveira Fontes (Coord.), Os Dominicanos em Portugal (1216-2016), CEHR da UCP, Lisboa 2018; Actas do Colóquio (Porto, Outubro 2012), A Restauração da Província Dominicana em Portugal. Memória e Desafios, Tenacitas, Coimbra 2012. 

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