sábado, 1 de setembro de 2018

A mística do quotidiano 2

Anselmo Borges
"Então? Qual é a mística verdadeira? É aquela que, em Deus, o Bem e a Beleza, leva a tratar dos irmãos e a transformar o mundo"

Há uma história que Aristóteles narra sobre uma palavra do filósofo Heráclito a uns forasteiros que queriam chegar até ele. Aproximando-se, viram como se aquecia junto a um fogão. Detiveram-se surpreendidos, enquanto ele lhes dava ânimo: "Também aqui estão presentes os deuses".

Os visitantes ficaram frustrados e desconcertados na curiosidade que os levou a irem ao encontro do pensador. Julgavam ter de encontrá-lo em circunstâncias que, ao contrário do viver dos homens comuns, deveriam mostrar em tudo os traços do excepcional e do raro e, por isso, excitante.

Em vez disso - e estou a transcrever o comentário do filósofo Martin Heidegger à história relatada por Aristóteles -, os curiosos encontraram Heráclito junto ao fogão. É um lugar banal e bastante comum. Ver um pensador com frio que se aquece tem muito pouco de interessante. A situação é mesmo frustrante para os curiosos. Que farão ali? Heráclito lê essa curiosidade frustrada nos seus rostos. Ele sabe que a falta de algo de sensacional e inesperado é suficiente para fazer com que os recém-chegados se vão embora. Por isso, infunde-lhes ânimo. Pede-lhes que entrem: "Também aqui estão presentes os deuses". Também ali, naquele lugar corriqueiro, é o espaço para a presentificação de Deus.

A mística Santa Teresa de Ávila também dizia que Deus anda na cozinha no meio das panelas. Para sublinhar que quem julga encontrar Deus fora do mundo lida apenas com as suas ilusões.

E há muitas formas de ilusão e pseudo-mística. Escreveu, com razão o então cardeal Joseph Ratzinger: "A curiosa magia dos estupefacientes apresenta-se como atalho para o Paraíso, aquele atalho que nos pouparia todo o "penoso" caminho da ascética e da moral. A droga é a pseudo-mística de um mundo que não tem fé, mas que de modo algum pode prescindir da ânsia da alma pelo Paraíso. A droga é, por conseguinte, um sinal indicador de algo mais profundo: não só descobre na nossa sociedade um vazio, que esta não é capaz de preencher com os seus próprios meios, como chama a atenção para uma exigência íntima do ser humano, que, se não encontrar a resposta acertada, se manifesta de forma pervertida".

Santo Agostinho viu bem, quando rezou: "Senhor fizeste-nos para ti e o nosso coração está inquieto enquanto não repousar em ti". Jesus, que é quem terá feito a máxima experiência mística, já tinha prevenido: quem quiser salvar a sua vida perde-a; quem a perder por amor de Deus e dos outros ganha-a. É preciso ir até ao mais fundo e mais íntimo, porque é lá que se encontra Deus. Mas é sempre a dialéctica do perder e ganhar. Onde está o nosso eu verdadeiro? Dou um exemplo: onde está o nosso eu, quando escutamos uma daquelas sinfonias que nos exaltam e extasiam? Aparentemente, perdemo-lo, pois, na exaltação da sinfonia, não pensamos em nós, até nos esquecemos de nós, mas, precisamente aí, suspende-se o tempo e a morte e somos verdadeiramente nós.

Então? Qual é a mística verdadeira? É aquela que, em Deus, o Bem e a Beleza, leva a tratar dos irmãos e a transformar o mundo. Há, de facto, muita religião falsa, que os filósofos da suspeita justamente apelidaram de ópio. Mas também os estupefacientes são pseudo-mística. Por um lado, repito, eles exprimem, numa sociedade onde se experimenta o vazio, a necessidade de salvação e de sentido. Mas, por outro, na droga, o que acontece é a alienação. Pretende-se superar os problemas, mas os problemas continuam lá, e mais graves. A droga leva a "viagens" aparentemente felicitantes, mas, como aquilo é produto da química, quando se regressa da viagem, reencontra-se os problemas e está-se com menos força e energia para enfrentá-los. O critério da mística autêntica tem, portanto, a ver com a força e energia para enfrentar a existência e transformá-la e contribuir para uma sociedade mais justa, fraterna e livre.

Na união com Deus, Mistério último da realidade, o crente continua no mundo, embora o veja, precisamente por causa dessa união, a uma luz nova. Por isso, mística, sem o compromisso com os outros, concretizado também no amor político, que inclui o amor cósmico-ecológico, é auto-engano. Como escreveu o filósofo Henri Bergson, "a mística completa é acção"; o místico autêntico, "através de Deus, por Deus, ama a humanidade inteira com um amor divino". Aliás, para Bergson, a prova da existência de Deus são os místicos.

Por isso, todas as religiões acentuam o vínculo indissolúvel entre mística e ética. São João escreveu de modo forte e pregnante: "Se alguém possuir bens deste mundo e, vendo o seu irmão com necessidade, lhe fechar o seu coração, como é que o amor de Deus pode permanecer nele?" São Tiago não é menos explícito: "De que aproveitará a alguém dizer que tem fé, se não tiver obras? Acaso essa fé poderá salvá-lo? Se um irmão ou irmã estiverem nus e precisarem de alimento quotidiano e um de vós lhe disser: "Ide em paz, aquecei-vos e saciai-vos", sem lhes dar o que é necessário ao corpo, de que lhes aproveitará? Assim também a fé: se a fé não tiver obras, está completamente morta".

O Evangelho deixa qualquer leitor perplexo. De facto, referindo-se ao Juízo Final, não à maneira de Miguel Ângelo, na Capela Sistina, mas no sentido mais profundo da revelação definitiva do que é a realidade verdadeira na sua ultimidade, de quem é Deus para o ser humano e o ser humano para Deus, não pergunta aos homens e às mulheres, em ordem à salvação, se praticaram actos religiosos de culto, mas se deram de comer ao famintos e de beber aos que têm sede, se vestiram os nus, se trataram os doentes e os abandonados, se foram à cadeia visitar os presos (e supõe-se que estavam lá justamente condenados)... E os salvos, que não sabiam, ficam a saber que foi ao próprio Cristo que deram de comer, de beber, que vestiram, que acolheram, que visitaram no hospital ou na cadeia, que trataram em todas as dificuldades, que promoveram, que foi a ele que deram a mão. Apresenta-se, pois, como critério de juízo sobre a História a humanitariedade, isto é, o interesse real, prático, eficaz, pelo ser humano necessitado, na unidade do amor de Deus e do próximo.

O místico Ruysbroek disse: "Se estiveres em êxtase e o teu irmão precisar de um remédio, deixa o êxtase e vai levar o remédio ao teu irmão; o Deus que deixas é menos seguro do que o Deus que encontras". Também Buda, depois de ter lavado e tratado de um monge doente e abandonado, disse aos seus monges: "Quem quiser cuidar de mim cuide dos enfermos". São João da Cruz tem aquela expressão famosa: "Ao entardecer desta vida examinar-te-ão no amor".

Aí está, em síntese, a missão da Igreja: ser a multinacional do sentido, sentido último, que se encontra no Mistério, em Deus, e o espaço do combate, lúcido e eficaz, pela humanitariedade, num mundo justo e livre. A vida na sua dupla vertente: vida contemplativa e vida activa.

Anselmo Borges, no DN

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