«“Do que sobrou, que nada se perca”, recomenda Jesus, após os comensais se terem saciado. A medida do alimento foi a necessidade. E a recolha é orientação de vida dada pelo Mestre. Há fome em muitas partes. O desperdício não é humano nem cristão. A ética dos bens económicos tem necessariamente implicações práticas. Também aqui o Evangelho é luz para a nossa passagem à outra margem do mar da vida. Faz-te conviva de Jesus. Alcançarás um novo olhar.»
Jesus continua a missão à beira do mar da Galileia. Vinha da outra margem, acompanhado por numerosa multidão. As atitudes que assume denotam o ânimo de cansado peregrino. Sobe ao monte, lugar de repouso e de oração. Com ele vão os discípulos. Senta-se, como bom Mestre a fazer os seus ensinamentos. Levanta o olhar e vê quem vem ao seu encontro: A multidão que persiste em ficar com ele. Parece “esquecer” o que pretendia com o refúgio procurado.
E age imediatamente. É preciso dar de comer àquela gente. O amor compassivo move-o a tomar a iniciativa. Embora saiba o que há-de fazer, quer envolver na busca de solução os discípulos. E assim nos ensina com o seu proceder. As maravilhas de Deus, de que ele é portador/realizador, passam por mãos humanas. Que alegria! Que responsabilidade! Agora, somos nós os “felizardos”.
João, o narrador, apresenta a cena ocorrida com detalhes significativos (Jo 6, 1-15). Indica o local e o tempo, narra o diálogo em busca da melhor solução, mostra a acção dos discípulos, faz-nos ver o proceder de Jesus e o comportamento da multidão que segue prontamente as suas orientações. E deixa, em relevo, a atitude do rapazinho do farnel. É nele que está a reserva do presente e a esperança do futuro: Partilha dos dons e promessa do Pão da vida, a Eucaristia; base de alimentação para os convivas acompanhantes, agora, e símbolo da refeição dos “convidados para a ceia do Senhor”, sempre, como se recorda antes da comunhão na missa. E tudo acontece em ambiente de pic-nic, diríamos em linguagem de hoje!
Vamos seguir a narração de João que comporta elementos que são verdadeiras mensagens, embora pareçam insignificantes. O seu conjunto faz-nos entrar mais profundamente no Evangelho, conhecer Jesus, ver a reação dos seus opositores, os judeus.
A partilha do pão, fruto do farnel e da bênção de Jesus, faz parte dos sinais que João apresenta numa sequência expressiva: A água convertida em vinho, em Caná: a cura do filho do funcionário real; a cura do paralítico; a “multiplicação” dos pães; o andar sobre as águas; o cego de nascença; a ressurreição de Lázaro, pré-anuncio da manhã de Páscoa. Tudo converge nos sinais do lava-pés e do mandamento novo, o do “amai-vos como Eu vos amei”, memorial perene da sua paixão glorificada.
A multidão seguia Jesus pelas curas que ele lhe fazia e não por ele mesmo. Pelas curas que satisfazem as suas necessidades. Estava ainda centrada em si e queria um “pronto-socorro” sempre funcional. Não consegue passar do sinal à realidade, do bem feito a quem o faz. Por isso, aponta João, no fim da narrativa, que Jesus “fugiu sozinho para a montanha” perante a iminência de ser aclamado rei.
Que desconsolação terão sentido os discípulos e os beneficiados! Mas, o caminho é outro e a realeza, também: Deixar-se atrair e encontrar com Ele, ter um olhar bondoso e penetrante, ser compassivo, provocar colaboração, partilhar o que se tem, sem reservas, organizar a acção de intervenção de modo participativo e tantas outras atitudes reveladoras da nossa relação com Jesus Cristo. Enfim, ter autoridade para servir.
João lembra que está próxima a festa da Páscoa. Situa no tempo esta acção de Jesus e “lança a ponte”para os acontecimentos finais da vida terrena de Jesus: a liberdade de acção, o amor de entrega, a verdade da opção que o leva a viver a relação com todos no processo, de que é vítima. E, por antecipação, simbolizada na ceia de despedida, a da instituição da eucaristia.
Jesus envolve Filipe com a pergunta “onde comprar pão”? E a resposta indica uma soma astronómica (cerca de 30 mil euros, em moeda actual) para a magra bolsa do Mestre. André intervém e aduz um elemento novo, o do rapazinho do farnel com cinco pães de cevada e dois peixes. Uma insignificância! E brilha de novo a mensagem que João transmite: não estamos a nível de compra e venda, mas de partilha e dom; não estamos a procurar ganhos nem a defender interesses, mas a oferecer gratuidade e benevolência; não estamos centrados em nós, mas preocupados com os outros, sobretudo os famintos pelas mais diversas razões. Sem chegarmos aqui, não alcançamos a verdade de Evangelho. As coisas simples contêm o gérmen das grandes alegrias.
Tolentino de Mendonça, o arcebispo português escolhido pelo Papa Francisco para director das bibliotecas e dos arquivos do Vaticano, dizia, há dias, em Fátima aos casais das Equipas de Nossa Senhora, que a alegria não se reduz a um bem-estar, ou aos momentos de conforto emocional, mas é, fundamentalmente, “uma expressão profunda do ser que pode dar-se em todas as horas e estações”, e não apenas num “intervalo” ou em “momentos extraordinários”. E acrescenta: “Em vez de crescermos na severidade, na indiferença, no sarcasmo, na intransigência, no lamento, na solidão frente ao ecrã do telemóvel ou do computador, caminhemos esperançosamente ao encontro uns dos outros”. A concluir pediu para se acreditar na alegria que nasce das coisas simples.
Jesus sabia como fazer o seu “pic-nic”. Havia erva abundante no campo e o povo pode reclinar-se/sentar-se à-vontade. Fica mais confortável. Pode acompanhar com mais facilidade o que vai seguir-se. Escuta e vê com maior atenção. Participa a seu modo na acção em curso.
Esta atitude é própria do discípulo. Sentar-se é entrar em relação com Jesus de modo novo; é reconhecê-lo Mestre e esperar a palavra de cura regenerativa, da salvação em realização. No pic-nic, além do alimento, há o convívio alegre, o reviver memórias comuns, a irradiação contagiante da esperança que anima e antecipa sonhos de felicidade. No pic-nic, “embrião” da nossa celebração dominical, há sobretudo o sentido fraterno de quem se sabe comensal à mesa comum que Deus prepara para os seus amigos. Como sentimos estes valores nas missas em que participamos?
“Do que sobrou, que nada se perca”, recomenda Jesus, após os comensais se terem saciado. A medida do alimento foi a necessidade. E a recolha é orientação de vida dada pelo Mestre. Há fome em muitas partes. O desperdício não é humano nem cristão. A ética dos bens económicos tem necessariamente implicações práticas. Também aqui o Evangelho é luz para a nossa passagem à outra margem do mar da vida. Faz-te conviva de Jesus. Alcançarás um novo olhar.
Georgino Rocha