Georgino Rocha |
"A fé faz-nos conhecer Jesus e acolher a sua novidade que nos abre os olhos à verdade da realidade, nos leva a descobrir a presença oculta de Deus nos sofrimentos e fracassos da vida, como afirma São Paulo; que nos mostra portas abertas e caminhos longos onde se fecham as portas da sinagoga."
Jesus, após a primeira experiência da missão pública, regressa a casa, à terra natal, a Nazaré, aldeia onde se havia criado. Vem acompanhado pelos discípulos e o evangelista Marcos ( 6, 1-6) deixa em aberto o leque de hipóteses para este regresso. Saudades da Mãe? Dar uma justificação a José, seu pai segundo a lei? Rever amigos? Apresentar a sua nova família, a dos discípulos? Reganhar forças porque sentia já alguma rejeição da parte dos ouvintes? Ou ainda outra que provavelmente será a mais verdadeira e ponderada, como a de anunciar o reino de Deus aos seus conterrâneos?
Que indicação preciosa nos dá esta atitude de Jesus. De vez em quando precisamos de regressar a casa, de mergulhar na memória, de procurar o calor dos vizinhos e amigos, de rever com novo olhar rostos familiares e o espaço onde nos criámos, de libertar sonhos que, então, acalentámos e estão em realização. Que humanidade nos deixa e que desafio nos faz! Que forma admirável de viver o tempo de modo saudável! Regressar “ao berço” faz-nos encontrar a identidade e realimentar a esperança, faz-nos realinhar a imaginação e empreender novas ousadias.
O relato de Marcos refere apenas a visita de Jesus à sinagoga onde encontra muita gente. E, sem mais ritual, mostra o que acontece. Jesus toma a palavra e faz a sua comunicação. Como e sobre quê? Não é referido. Só se faz o registo da reação dos ouvintes, reação de admiração, de perplexidade, de dúvida, de desprezo; reação que leva Jesus a um comentário inspirado nas sentenças de Jeremias: “Um profeta só é desprezado na sua terra, entre os seus parentes e em sua casa”.
O relato não menciona ninguém da casa de Jesus, embora diga que é o carpinteiro, filho de Maria; já os parentes homens têm nome: Tiago, José, Judas e Simão, que o texto refere como irmãos. As mulheres ficam englobadas na designação genérica de irmãs; e os da terra, estavam representados na atitude dos restantes presentes na sinagoga. O desprezo, agora denunciado, vai acompanhar a missão pública e mostra-se, sem pena nem agravo, no processo de julgamento e de morte no Calvário. Então é a rejeição completa.
A narração de Marcos faz-nos ver dois olhares diferentes: O dos nazarenos e o de Jesus. Os nazarenos retinham o estilo de Jesus, vizinho e trabalhador, inserido na família de sangue, frequentador da sinagoga, ordeiro e praticante fiel das antigas tradições. E por isso estranham a sabedoria das suas palavras e o alcance dos seus gestos prodigiosos. Jesus dá uma nova dimensão à experiência adquirida na família, na terra natal, na sinagoga. E abre-a ao anúncio do reino de Deus, à realidade de uma situação germinal que está em curso. E certamente desta novidade lhes terá falado e deixado o apelo a que a descortinem com as razões do coração e o afecto da inteligência. Só ao nível da fé se entra em sintonia com Ele e os olhos humanos encontram a verdade do que está a acontecer.
A surpresa dos nazarenos é natural. Jesus tem um comportamento fora do comum: não fala nem pensa nem vive como era de esperar de um filho daquela família, de um natural daquela terra. “O facto, afirma J. M. Castillo, (La Religión de Jesús, ciclo b, p. 254), é que a conduta de Jesus foi vista como «desviada», merecedora só de desprezo. E ninguém, nem na família mais íntima, confiou nele. Isto é muito duro na vida de uma pessoa. É o preço da liberdade. Sobretudo, a liberdade perante pessoas às que nos sentimos mais ligadas. A dolorosa estranheza de Jesus estava justificada”.
Jesus queixa-se do desprezo a que é votado pelos conterrâneos. A novidade de que é portador não lhes interessa. A sabedoria que revela só desperta admiração e não induz à imitação. Os prodígios que realiza ficam fechados no âmbito dos beneficiários e não provocam a abertura a perguntas de sentido, a Deus que Jesus mostra já presente e quer anunciar. Por isso, vai pregar a outras terras. Diz o texto: “Estava admirado com a falta de fé daquela gente. E percorria as aldeias dos arredores, ensinando”. Que turbilhão de sentimentos terá afluído ao seu espírito e como os terá digerido! Ele ser desprezado como profeta, desconhecido como sábio e incapaz como médico! E dizerem-lho “na cara”, após o terem reconhecido como insinuam as perguntas/exclamações que fazem na sinagoga.
“Tal como Jesus foi reduzido à impotência por aqueles que afirmavam conhecê-lo melhor, adianta Manicardi, Comentário, p. 116, assim a fé pode hoje ser tornada insignificante por aqueles mesmos que pretendem fazer-se seus paladinos e defensores, mas na realidade a reduzem às suas próprias visões do mundo e não aceitam deixar-se pôr em causa”.
A fé faz-nos conhecer Jesus e acolher a sua novidade que nos abre os olhos à verdade da realidade, nos leva a descobrir a presença oculta de Deus nos sofrimentos e fracassos da vida, como afirma São Paulo; que nos mostra portas abertas e caminhos longos onde se fecham as portas da sinagoga.
No entanto, cuidado, adverte o comentarista da liturgia dominical, em Homilética, 20\8/4, p. 431, pois “quando conhecemos alguém muito de perto (no tempo, no esspaço…) mas sem haver entrado com verdade na sua realidade mais verdadeira, ficamos fora, não entramos, e chegamos a desprezar o valioso que há nessa pessoa, sem querer reconhecê-lo. A vida traz muitas surpresas e há que aprender a valorar os demais. Toda a pessoa tem uma mensagem para ti”. É muito assertivo o convite de regressar a casa e purificar o olhar. Experimenta!
Georgino Rocha