"E vem a pergunta crucial: Para mim, quem conta realmente na vida? De quem me sinto mais próximo? Seria muito útil elaborar uma lista de nomes e, por cada um, louvar o Senhor que nos une e aproxima."
Jesus está em Cafarnaúm. Vem da sua terra natal, percorre a Galileia e faz-se hóspede em casa de Simão. Entretanto, chama discípulos, cura doentes, entusiasma tantas pessoas que deixam tudo, o acompanham e acorrem a Ele. Está a ponto de nem sequer poder comer. (Mc 3, 20-35). É impressionante este início da missão em público. A novidade surpreendente mobiliza e interpela. A Nazaré, chegam ecos desta actividade e os familiares põem-se a caminho para O deter, “pois diziam: está fora de Si”. Mais tarde, Jesus volta à sua terra natal e nela é recebido de forma tão hostil que querem lançá-lo por um precipício. Estranha reacção esta, a de O considerarem sem juízo, em vez de se abrirem à novidade, à interrogação, à busca de sentido oculto nas aparências. E eu como me sinto? Qual a minha reacção face à novidade de Jesus? Não podemos nós correr um risco semelhante? Convém estar atentos, lúcidos e abertos.
“A hostilidade e o duro juízo dos familiares de Jesus, anota Manicardi, p. 107, iluminam um dos aspectos das suas escolhas: a sua vida itinerante e celibatária com uma pequena comunidade de discípulos, prejudica economicamente a família, que se vê privada não só de um dos seus membros, mas também das vantagens económicas e do prestígio social que a aliança com outro grupo familiar, garantida por um casamento, teria trazido”
As notícias a respeito de Jesus espalham-se, atingem Jerusalém, e os escribas decidem enviar uma embaixada fiscalizadora. Já trazem o parecer formado, acusando-O de possesso que age às ordens do grande chefe: Belzebú. Apesar disso, Jesus acolhe-os amigavelmente, chama-os para junto de si, e começa a falar-lhes em parábolas. Que atitude contrastante e intenção reveladora! Que pedagogia de Mestre que assume o nível dos seus interlocutores para iniciar a possível caminhada para a verdade. E que verdade!
Jesus faz descer a acusação doutrinal para a vida prática. Recorre a dois exemplos correntes: O reino e a casa. Ambos são objecto de tentação: o reino, de divisão; a casa, de assalto. No entanto, não correm perigo maior enquanto o defensor estiver vigilante e tiver forças para resistir. Jesus fazia alusão clara às forças do mal de que era acusado de estar possesso. Mas se vem alguém mais forte e amarra com segurança quem tem o dever de guardar, então a situação altera-se profundamente. É o que está a acontecer. As forças diabólicas estão vencidas e controladas. Marcos, o narrador da parábola, não regista qualquer contestação dos escribas. Por agora, calam-se, mas ficam a remoer a novidade.
Os discípulos acompanham a cena, vêem as atitudes, ouvem os diálogos e, possivelmmente, guardam na memória o que lhes pode servir de referência exemplar na vida futura. E não lhes faltarão acusações difamatórias e de condenação. A história regista um esclarecedor repertório.
Jesus tem um proceder que parece estranho para com os parentes, sobretudo a Mãe. E não é. Este momento constitui a grande revelação da Sua nova família. Avisado de que haviam chegado e vinham à sua procura, faz um gesto singular: “Olhando para aqueles que estavam à sua volta, disse: «Eis a minha Mãe e meus irmãos. Quem fizer a vontade de Deus esse é meu irmão, minha irmã e minha Mãe» ”.
Este é o maior elogio a Maria de Nazaré, a afadigada mãe que, sabendo que o filho corria perigo, se põe a caminho para o proteger como dom que Deus lhe confiara e nela gerara. Este é o maior reconhecimento da dignidade de todos os que, à imagem de Maria, aceitam pela fé o convite para serem fecundos no apostolado. Este é o maior desafio que fica posto aos discípulos fiéis: situar sempre o valor da vida numa perspectiva de doação incondicional, ainda que seja preciso chegar ao martírio. Este é a maior provocação à Igreja cristã que, no proceder de Jesus, lança as raízes estáveis para os vendavais da história. Esta é a sabedoria que irradia: fazer das adversidades oportunidades de novas mensagens.
A passagem do Evangelho da liturgia de hoje faz-nos mergulhar na revolução que Jesus aporta para todo o mundo, pode ler-se no comentário de “Vers le Dimanche”, nº 498, 10 de Junho de 2018, Revolução que, para os sábios da sua época, é semelhante à que a teoria de Copérnico desencadeou. O Espírito age no mundo e vai ganhar ao chefe dos demónios. Revolução que, para a família de Jesus e dos que o seguiam com prazer, reveste a fisionomia de uma revolução familiar: os elos de sangue são suplantados pelos laços do coração e da fé, que o Espírito tece no seio da grande família humana que vem reconciliar. Revolução que nos quer atingir pessoalmente e nos faz olhar e reconhecer as pessoas da rua ou dos fiéis da missa como uma mãe, um irmão ou uma irmã potencial de Jesus. Como ´cada um de nós. E vem a pergunta crucial: Para mim, quem conta realmente na vida? De quem me sinto mais próximo? Seria muito útil elaborar uma lista de nomes e, por cada um, louvar o Senhor que nos une e aproxima.
Fazer a vontade de Deus é o segredo da nova fraternidade. Sem limites de espaço, de tempo, de credo político, de culturas, de sistemas económicos, de religião. Quem é honesto com a sua consciência iluminada pela sabedoria dos povos, codificada em sentenças ou registada em obras memoráveis; quem articula o bem pessoal com o bem comum e trabalha pela felicidade de cada pessoa concreta e de todas em conjuntos humanos; quem pratica o voluntariado em qualquer das suas expressões por amor de doação; quem professa explicitamente a fé cristã e vive em Igreja, sendo coerente em todo o seu agir…, estes estão abrangidos pelo olhar benevolente de Jesus, o rosto misericordioso de Deus Pai, e sob a protecção maternal de Maria. Que olha cada um na sua situação concreta e, por isso, diversificada, dando origem a um arco-íris de representações religiosas. Objectivamente, nem todas explicitam com a mesma intensidade o rosto do nosso Deus. Mas a diferença, não anula a realidade; antes a enriquece.
A Igreja constitui, por excelência sacramental, a nova família de Jesus. Faz-nos bem reconhecê-lo no conjunto de tantas outras formas de presença. Faz-nos bem apreciar e viver, nas relações pessoais e institucionais, o correspondente espírito filial e fraterno. Somos a nova família de Jesus!
Georgino Rocha