«O Papa não precisa de aumentar o número de cardeais que resistem, de forma activa e passiva, às reformas que ele anunciou desde a primeira hora e que procuram que essas reformas não lhe sobrevivam. A Igreja precisa de cardeais que ajudem este Papa e que sejam uma garantia de que estas reformas se tornem, de forma criativa, irreversíveis.
Não se pode deixar de realçar as declarações do bispo António Marto: O Santo Padre conhece bem o que eu penso e sabe que tem em mim um apoiante.»
1. No Concílio de Trento (1545-1563), frei Bartolomeu dos Mártires, arcebispo de Braga, teria afirmado que os eminentíssimos cardeais precisavam de uma eminentíssima reforma. Esta custou muito a chegar e, no nosso tempo, foi o papa Francisco que se empenhou na reforma da Cúria com uma coragem e desenvoltura que não fica nada a dever à do nosso bracarense. Perante as resistências activas e passivas que encontrou, já terá desistido? Há quem assim julgue e há quem assim espere. Creio que estão enganados.
Em 2017, pelo quarto ano consecutivo, Bergoglio voltou a usar a mensagem de Natal à Cúria Romana para sublinhar, com muita dureza: para servir a missão da Igreja na sociedade continuam a ser indispensáveis mudanças profundas na assembleia dos cardeais e na mentalidade de muitos elementos da hierarquia eclesiástica.
Destacou que alguns dos que formam o aparelho burocrático do Vaticano usam-no para formar grupos de pressão e de intriga, para impedir as reformas que ele próprio desencadeou. São um cancro que gera egoísmo e está infiltrado nos organismos eclesiásticos e nas pessoas que lá trabalham. A permanente denúncia que o Papa faz do clericalismo e do carreirismo destina-se a libertar a criatividade das comunidades cristãs, frutos da graça do Pentecostes, em saída para todas as periferias existenciais e prontas para todos os socorros como um hospital de campanha.
Estas expressões só não se tornaram lugares-comuns porque a imaginação de Bergoglio surpreende-nos todos os dias e o desejo de dominar renasce em todas as gerações. Em nome de banalidades sacralizadas, o Papa é apelidado de herético e o sempre assim foi serve os sinais da restauração do catolicismo convencional. Pelo contrário, a santidade é fonte de criatividade de novas expressões do Evangelho no mundo caótico e niilista da nossa actualidade.
Desde que foi eleito, em 2013, não abandonou a sua obsessão de reforma da Cúria, dominada por italianos. Era inadiável acabar com os escândalos financeiros e os comportamentos de ocultação da pedofilia de eclesiásticos que tornavam a imagem da Igreja, nos meios de comunicação social, como irrecuperável.
As resistências foram muitas e não desarmaram. O Papa destacou: até os que foram incumbidos de realizar as reformas traíram a confiança, deixando-se corromper pela ambição e vã glória. Quando são afastados, declaram-se, erradamente, mártires do sistema... em vez de fazerem o mea culpa.
Quando se fala na reforma da Cúria, convém ter em conta a sua história e os debates actuais em torno de questões de ordem sociológica, política, teológica e pastoral. Isto não cabe nos limites de uma crónica. Sugiro, por isso, a leitura de um bem informado artigo de Massimo Faggioli [1].
2. A reforma da Cúria é um trabalho em andamento. Este Papa não quer fazer dela um processo burocrático dependente de uma nova constituição apostólica, como disse Dom Semeraro. Segue os princípios da flexibilidade gradual, da tradição como fidelidade à história, da inovação e da simplificação.
Na visão de Bergoglio, a Igreja, o papado e a Cúria Romana estão interligados. A Cúria não existe apenas para transmitir mensagens para o resto da Igreja, mas também para receber mensagens de uma Igreja sinodal.
Além disso, a existência da Cúria é vital para que o génio romano, isto é, a aspiração de Roma a ser a síntese, seja o ponto de encontro da dimensão universal e local da Igreja. O Papa leva a sério a ideia de reforma de Yves Congar: o primado da caridade e da pastoralidade; a preservação da comunhão; a paciência e respeito pelos atrasos; a renovação através de um retorno ao princípio da tradição, a não confundir com as tradições.
Para M. Faggioli não existe nenhuma alternativa real à proposta do dominicano Y. Congar para uma reforma da Igreja, excepto aquela que levaria a um cisma. Mas, do ponto de vista das actuais políticas eclesiais, a questão é muito mais complicada. A ideia de Congar sobre a reforma da Igreja pode ser frustrante para aqueles que perderam a paciência que o teólogo francês invocava há 50 anos.
Muitos católicos esperavam que Francisco já tivesse implementado uma reforma institucional visível da Cúria depois de cinco anos no cargo. Mas, como já dissemos, o Papa não acredita numa reforma burocrática.
Apesar das esperanças dos liberais e dos temores dos conservadores do statu quo, o papa Francisco não governa por decreto, nem mesmo a Cúria.
Para ele, a reforma é, em primeiro lugar, movimento e não apenas a mudança estrutural das instituições. É uma mudança de mentalidade, que não começa com uma mudança na lei. É uma descentralização, o que significa que as periferiasdevem assumir mais responsabilidades. Faz parte do caminho para uma Igreja mais colegial e sinodal, que é salvaguardada através do papel universal do bispo de Roma.
O Papa deseja a Cúria Romana como um pequeno modelo de Igreja, que procura ser sério e, quotidianamente, mais vivo, mais saudável, mais harmonioso e mais unido entre si e a Cristo [2]. Não aceita a Cúria para um lado, a Igreja para outro e em luta permanente.
3. No domingo passado, o Papa anunciou que a 29 de Junho haverá um consistório para a nomeação de 14 novos cardeais. A proveniência destas nomeações procuram exprimir a universalidade da Igreja. Entre os novos cardeais surge o bispo de Leiria-Fátima, António Marto. Daqui o saúdo pelos motivos que foi nomeado e pelos que aceitou.
O Papa não precisa de aumentar o número de cardeais que resistem, de forma activa e passiva, às reformas que ele anunciou desde a primeira hora e que procuram que essas reformas não lhe sobrevivam. A Igreja precisa de cardeais que ajudem este Papa e que sejam uma garantia de que estas reformas se tornem, de forma criativa, irreversíveis.
Não se pode deixar de realçar as declarações do bispo António Marto: O Santo Padre conhece bem o que eu penso e sabe que tem em mim um apoiante.
Não o move a atracção pelas caudas vermelhas e os chapéus cardinalícios. A simplicidade do Papa e as suas causas bastam-lhe. Não aceitou a sua escolha em termos de meritocracia, mas como um serviço que lhe é pedido. Não é um prémio, uma terceira Rosa de Ouro ao Santuário de Fátima.
Frei Bento Domingues no PÚBLICO
[1] Uma “reforma da reforma’’ diferente: Papa Francisco e a Cúria Romana, artigo publicado por La Croix International, 05.02.2018. Ver tradução em: http://www.ihu.unisinos.br/575885-uma-reforma-da-reforma-diferente-papa-francisco-e-a-curia-romana-artigo-de-massimo-faggioli
[2] Encontro pré-Natal em 2014