Para a festa do Corpo de Deus
Custódia da Igreja Matriz |
Jesus vê chegar a hora do triunfo dos seus inimigos. E não quer deixar de estar presente junto dos amigos. Criativo como é, sonha uma forma especial de realizar o seu desejo. Não o quer fazer sozinho. Chama os discípulos que, preocupados, querem saber onde fazer os preparativos para a ceia pascal. E diz a dois deles: “Ide à cidade. Virá ao vosso encontro um homem com uma bilha de água. Seguí-o”. E eles foram, encontraram tudo o que Jesus havia dito e prepararam a Páscoa.
Que maravilha: A liberdade em acção; a iniciativa por antecipação; o envolvimento como processo de intervenção e crescimento; o seguimento como via de realização; a alegria como leveza de missão e élan de prontidão. Faz-nos bem contemplar a atitude de Jesus que se manifesta na convergência de factores, na sintonia de vontades, na concórdia de actores intervenientes. Talvez nos sirva como referência para a preparação da celebração da Eucaristia, especialmente a dominical.
Uma vez à mesa e enquanto comiam, “Jesus toma o pão, dá graças, parte-e e reparte-o pelos discípulos, dizendo: “Tomai: isto é o meu Corpo”. O mesmo faz com a taça de vinho, de que todos beberam enquanto Jesus afirmava: “Este é o meu Sangue, o Sangue da nova aliança, derramado pela multidão dos homens”. E acrescenta que só voltará a beber “do vinho novo no reino de Deus”, encarregando os comensais de prosseguirem a sua missão, dizendo: “Fazei isto em memória de Mim”.
As palavras sobre o pão partido e a seguir dado aos discípulos fazem dele um pão “falado” e as que seguem, não só a distribuição do cálice mas também o acto de beber, significam igualmente um vinho falado que simboliza e reassume a vida dada por Jesus e profetiza e antecipa a morte cruel. São a prioridade do dom que caracteriza o gesto eucarístico e indicam o facto de que a resposta positiva do crente é o acolhimento do dom, o sim à graça, a gratidão. (Cf. Manicardi, Comentários à Liturgia Dominical, p. 161-162).
A Igreja, comunidade dos discípulos, recebe este tesouro confiado a mãos humanas, dotadas de energias vigorosas e marcadas por fragilidades e limites de risco. Sob a acção do Espírito Santo, procura ser fiel ao seu Senhor e organiza a celebração tendo em conta este núcleo original configurado pela linguagem das culturas e marcas da história. O modelo romano acaba por se constituir predominante e difundir pelas várias partes do mundo, garantindo a unidade em prejuízo da pluralidade. O concílio Vaticano II recupera a legitimidade litúrgica de alguns ritos, recomenda a sua renovação e define algumas regras de procedimento. O mesmo faz e com maior insistência às celebrações da Liturgia oficial da Igreja. Faz-nos bem apreciar o caminho andado, os esforços em curso para avançar na renovação com fidelidade criativa e tornar acessível a linguagem e os gestos no contexto em que vivemos, a cultura actual.
“Fazei isto em memória de Mim”. É mandato de amor que se faz corpo entregue e sangue derramado por todos/as, os humanos, e se repercute na criação e nas criaturas. Isto é o gesto de partir e repartir, mas muito mais. É a disposição que Jesus alimenta durante a vida e manifesta no processo desta ceia singular; disposição que brilha na obediência livre à Vontade do Pai; disposição que é preocupação solícita pelo direito à vida digna e à verdade sincera; disposição que é atenção que facilita a cura de feridos e promove a integração de excluídos; disposição que é serviço incondicional à esperança de que outro mundo é possível, e por isso, necessário, onde cada pessoa e todas as pessoas tenham voz, vez e lugar.
E pelo valor da causa que o anima vai até ao fim: perdão a quem o mata; alegria de júbilo a Deus Pai que o ressuscita pela força do Espírito Santo; presença amorosa na Eucaristia que a Igreja celebra como memorial das maravilhas que Ele continua a realizar e que reconhece, vive e anuncia como “solenidade do Santíssimo Corpo e Sangue de Cristo”.
A festa do Corpo de Deus, como é vulgarmente designada entre nós, oferece-nos a oportunidade de reflectirmos sobre as “inesgotáveis riquezas da Eucaristia”; darmos «graças» a Cristo pelo dom total de Si mesmo em Corpo e Sangue, como alimento e bebida (Jo 6, 51-58); anunciarmos aos homens/mulheres com a nossa participação consciente na procissão do Corpo de Deus que é Cristo em sacramento que prolonga a celebração e percorre os caminhos do mundo; Cristo em sacramento que é o sinal da unidade, o vínculo do amor, a única força capaz de transformar a humanidade tão ansiosa de reconciliação e de paz. (Cf. Missal Popular Dominical, vol. I, 7ª edição, Gráfica de Coimbra.
Faz-nos bem rememorar estas maravilhas e recarregar as nossas forças espirituais para as tarefas da vida quotidiana chamada a ser santa e a preparar com o trabalho e os frutos da terra e da videira, o pão e o vinho da missa/eucaristia do Senhor e do povo cristão. Faz-nos bem sentirmos a necessidade de renovarmos a nossa participação na celebração e o nosso testemunho na família e na sociedade.
“São muitos os que alimentados pela Eucaristia e oração, escreve o bispo de Aveiro, António Moiteiro, na carta pastoral «Dai-lhes vós mesmos de comer», p. 22, têm dado testemunho de verdadeira ajuda aos irmãos, mas ainda é necessário converter muitos corações humanos. Por medo ou por vergonha acomodamo-nos, fazendo apenas o que nos diz a nossa consciência, descuidando aquilo aquilo que o próprio Jesus disse: « Se permanecerdes fiéis à Minha palavra, diz o Senhor, sereis verdadeiramente meus discípulos, conhecereis a verdade e a verdade vos libertará”.
“Fazei isto em memória de Mim”. É amor confiante, memorial agradecido, missão em caridade de libertação humanizadora, o coração da nossa fé. Jesus disse. A Igreja quer ser fiel. Sejamos coerentes.
Georgino Rocha