domingo, 29 de abril de 2018

A impertinência da evangelização

Frei Bento Domingues no PÚBLICO

Frei Bento Domingues


1. Encontrei, em várias intervenções de Thierry-Dominique Humbrecht [1] e no título de um dos seus livros, A evangelização impertinente, a sugestão para esta crónica, ainda que com desvios.
O autor referido pretende escrever um guia do cristão nos países pós-modernos.Teve bom acolhimento. Não se conforma com a moleza das expressões da presença cristã em algumas sociedades ocidentais. Não é preciso estar inteiramente de acordo com o seu diagnóstico nem com as suas propostas. É mais importante suscitar um debate do que apresentar soluções para cristãos apressados e preguiçosos.
Th-D. Humbrecht é um investigador da filosofia medieval e já deu provas da sua acutilância analítica. Não se resigna, porém, a viver na sua torre de marfim do passado, nem se conforma com o silêncio dos católicos nos actuais debates que percorrem a sociedade. O cristão parece intimidado, excluído da cultura, dando a impressão de que não se deixa interrogar pela gravidade do que está acontecer. Ao julgar irremediável que o país deixe de ser cristão, não se apercebe que existe uma estratégia, dita pós-moderna, interessada em libertar-se dessa herança. O niilismo exibido esconde, no entanto, um projecto de poder, por vezes, também, uma nostalgia.
Tendo em conta esse ambiente, que abrange uma grande complexidade, como é que um cristão se pode situar entre a compaixão, a cumplicidade e a contracultura? Perante os cortes na transmissão do que há de vivo no passado, o abandono de muitas heranças, a ditadura do relativismo e certo ateísmo católico, muitos cristãos têm a impressão de que o grande navio se tornou uma simples barcarola.
De facto, o próprio cristão cede muitas vezes a essa lógica: escolho o que me apetece e deixo de lado o que não me interessa. Nestas condições, como fazer ouvir o Evangelho? Pela palavra ou pelo exemplo? E onde: na família, na educação, na política, na cultura?
Entre a laicidade mal compreendida e os vãos apelos ao milagre, o caminho da providência é o que se baseia na nossa coragem pública. O cristão tem algo de insubstituível a dizer aos seus contemporâneos. Não há Igreja sem evangelizadores impertinentes, que ofereçam uma mensagem de esperança para tempos de relativismo.
Para o conseguir, é preciso desembaraçar-se de um paradoxal anti-intelectualismo. O cristão deve, pelo contrário, cuidar a sua formação e tornar-se competente sob o ponto de vista intelectual. Por isso, os jovens cristãos devem preferir profissões criativas, em todas as suas expressões, àquelas que acenam apenas com sucesso pessoal no campo financeiro.
O filósofo dominicano Th.-D. Humbrech, professor em várias universidades, inconformado com a incultura do vale tudo e o seu contrário, luta por uma viragem cultural, por um catolicismo competente no campo literário, artístico, filosófico, teológico, espiritual, ético e político.

2. Agrada-me esta vontade de acabar com um catolicismo culturalmente envergonhado e complexado. Detesto, porém, todas as derivas de compensação que vão desaguar no catolicismo fundamentalista, em nome da verdadeira doutrina da Igreja e se esgota na falsa tranquilidade dos catecismos e do Direito Canónico. A fé cristã não se fixa nas formulações dos credos. É uma entrega ao infinito amor de Deus que nenhuma expressão O pode limitar. O místico é aquele que não pode parar. É uma viagem permanente, sem apeadeiros, sem estações definitivas, até chegar à plenitude da alegria de Deus.
A fé é um activador da criatividade, não um extintor. Tomás de Aquino insistiu sempre em que uma coisa é recitar os credos da ortodoxia, outra é procurar entender Aquele a quem nos confiamos. Recitar o Credo sem procurar responder à questão: como é que é verdade aquilo que confesso ser verdade?, posso ser muito ortodoxo, mas sou uma cabeça vazia.
Também não basta ler os textos e as narrativas do Novo Testamento (NT). A letra mata, só o espírito do texto vivifica. Quando um padre ou um bispo faz uma homilia a repetir a leitura que já escutámos, bem podia ficar calado. É fundamental entrosar as narrativas bíblicas com as experiências actuais da fé, na encruzilhada dos problemas vividos na sociedade.
O Concílio Vaticano II, tão esquecido, lembrou que "é dever da Igreja investigar, a todo o momento, os sinais dos tempos e interpretá-los à luz do Evangelho; para que assim possa responder, de modo adaptado em cada geração, às eternas perguntas dos seres humanos acerca do sentido da vida presente e futura e da relação entre ambas. É, por isso, necessário conhecer e compreender o mundo em que vivemos, as suas esperanças e aspirações, o seu carácter tantas vezes dramático" [2].
A criatividade da fé cristã não se pode manifestar, apenas, nas expressões teológicas e na poesia mística. Pertence-lhe activar e exprimir-se em todas as grandes formas de criatividade humana: literatura, artes plásticas, encenações teatrais, cinema, bailado, humor e, sobretudo, música. Dentro e fora da liturgia.
Não é preciso nenhum mandamento divino para justificar esta atitude. Como dizia Tomás de Aquino, o bem deve ser praticado porque é bem e o mal devia ser evitado porque é mal.

3. Não podemos esquecer a impertinência do Evangelho de Jesus Cristo. Se tivesse sido mais acomodado podia ter tido uma carreira brilhante. O diabo do poder de dominação económica, política e religiosa bem o tentou e o Nazareno não tinha o fascínio de João Baptista pela austeridade. Ele gostava da vida. Tinha o defeito de não suportar ver uns à mesa e outros à porta; uns como povo de Deus e outros não se sabe de quem; uns classificados, à partida, como santos e outros como pecadores; uns privilegiados porque eram homens e outras marginalizadas porque eram mulheres.
Tinha a impertinência de gostar da vida para todos, desenvolvendo as potencialidades humanas e os talentos, sem discutir se estavam bem ou mal distribuídos. Tinha ainda um outro defeito: detestava a ganância e o carreirismo. Os discípulos que escolheu andavam sempre a perguntar-lhe o que ganhavam na sua companhia e o lugar que lhes estava destinado. Um dia teve de pôr tudo em pratos limpos, mas sem grande sucesso.
O Evangelho de S. Mateus [3], fruto de muita reflexão e de muita experiência pós-pascal, quis deixar, em três parábolas, algo de extraordinário: a importância da lucidez contra o deixar correr, a importância de ninguém se desculpar por não ser um génio, mas não há nenhuma ciência nem nenhuma capacidade de fazer fortuna que não tenha de olhar para o lado e ver os que ninguém cuida. 

Frei Bento Domingues

[1] Thierry-Dominique Humbrecht, O.P., L'évangélisation impertinente. Guide du chrétien au pays des postmodernes, Paris, Parole et Silence, 2012 (3e édition) 
[2] Gaudium et Spes, 4
[3] Mt 25

Etiquetas

A Alegria do Amor A. M. Pires Cabral Abbé Pierre Abel Resende Abraham Lincoln Abu Dhabi Acácio Catarino Adelino Aires Adérito Tomé Adília Lopes Adolfo Roque Adolfo Suárez Adriano Miranda Adriano Moreira Afonso Henrique Afonso Lopes Vieira Afonso Reis Cabral Afonso Rocha Agostinho da Silva Agustina Bessa-Luís Aida Martins Aida Viegas Aires do Nascimento Alan McFadyen Albert Camus Albert Einstein Albert Schweitzer Alberto Caeiro Alberto Martins Alberto Souto Albufeira Alçada Baptista Alcobaça Alda Casqueira Aldeia da Luz Aldeia Global Alentejo Alexander Bell Alexander Von Humboldt Alexandra Lucas Coelho Alexandre Cruz Alexandre Dumas Alexandre Herculano Alexandre Mello Alexandre Nascimento Alexandre O'Neill Alexandre O’Neill Alexandrina Cordeiro Alfred de Vigny Alfredo Ferreira da Silva Algarve Almada Negreiros Almeida Garrett Álvaro de Campos Álvaro Garrido Álvaro Guimarães Álvaro Teixeira Lopes Alves Barbosa Alves Redol Amadeu de Sousa Amadeu Souza Cardoso Amália Rodrigues Amarante Amaro Neves Amazónia Amélia Fernandes América Latina Amorosa Oliveira Ana Arneira Ana Dulce Ana Luísa Amaral Ana Maria Lopes Ana Paula Vitorino Ana Rita Ribau Ana Sullivan Ana Vicente Ana Vidovic Anabela Capucho André Vieira Andrea Riccardi Andrea Wulf Andreia Hall Andrés Torres Queiruga Ângelo Ribau Ângelo Valente Angola Angra de Heroísmo Angra do Heroísmo Aníbal Sarabando Bola Anselmo Borges Antero de Quental Anthony Bourdin Antoni Gaudí Antónia Rodrigues António Francisco António Marcelino António Moiteiro António Alçada Baptista António Aleixo António Amador António Araújo António Arnaut António Arroio António Augusto Afonso António Barreto António Campos Graça António Capão António Carneiro António Christo António Cirino António Colaço António Conceição António Correia d’Oliveira António Correia de Oliveira António Costa António Couto António Damásio António Feijó António Feio António Fernandes António Ferreira Gomes António Francisco António Francisco dos Santos António Franco Alexandre António Gandarinho António Gedeão António Guerreiro António Guterres António José Seguro António Lau António Lobo Antunes António Manuel Couto Viana António Marcelino António Marques da Silva António Marto António Marujo António Mega Ferreira António Moiteiro António Morais António Neves António Nobre António Pascoal António Pinho António Ramos Rosa António Rego António Rodrigues António Santos Antonio Tabucchi António Vieira António Vítor Carvalho António Vitorino Aquilino Ribeiro Arada Ares da Gafanha Ares da Primavera Ares de Festa Ares de Inverno Ares de Moçambique Ares de Outono Ares de Primavera Ares de verão ARES DO INVERNO ARES DO OUTONO Ares do Verão Arestal Arganil Argentina Argus Ariel Álvarez Aristides Sousa Mendes Aristóteles Armando Cravo Armando Ferraz Armando França Armando Grilo Armando Lourenço Martins Armando Regala Armando Tavares da Silva Arménio Pires Dias Arminda Ribau Arrais Ançã Artur Agostinho Artur Ferreira Sardo Artur Portela Ary dos Santos Ascêncio de Freitas Augusto Gil Augusto Lopes Augusto Santos Silva Augusto Semedo Austen Ivereigh Av. José Estêvão Avanca Aveiro B.B. King Babe Babel Baltasar Casqueira Bárbara Cartagena Bárbara Reis Barra Barra de Aveiro Barra de Mira Bartolomeu dos Mártires Basílio de Oliveira Beatriz Martins Beatriz R. Antunes Beijamim Mónica Beira-Mar Belinha Belmiro de Azevedo Belmiro Fernandes Pereira Belmonte Benjamin Franklin Bento Domingues Bento XVI Bernardo Domingues Bernardo Santareno Bertrand Bertrand Russell Bestida Betânia Betty Friedan Bin Laden Bismarck Boassas Boavista Boca da Barra Bocaccio Bocage Braga da Cruz Bragança-Miranda Bratislava Bruce Springsteen Bruto da Costa Bunheiro Bussaco Butão Cabral do Nascimento Camilo Castelo Branco Cândido Teles Cardeal Cardijn Cardoso Ferreira Carla Hilário de Almeida Quevedo Carlos Alberto Pereira Carlos Anastácio Carlos Azevedo Carlos Borrego Carlos Candal Carlos Coelho Carlos Daniel Carlos Drummond de Andrade Carlos Duarte Carlos Fiolhais Carlos Isabel Carlos João Correia Carlos Matos Carlos Mester Carlos Nascimento Carlos Nunes Carlos Paião Carlos Pinto Coelho Carlos Rocha Carlos Roeder Carlos Sarabando Bola Carlos Teixeira Carmelitas Carmelo de Aveiro Carreira da Neves Casimiro Madaíl Castelo da Gafanha Castelo de Pombal Castro de Carvalhelhos Catalunha Catitinha Cavaco Silva Caves Aliança Cecília Sacramento Celso Santos César Fernandes Cesário Verde Chaimite Charles de Gaulle Charles Dickens Charlie Hebdo Charlot Chave Chaves Claudete Albino Cláudia Ribau Conceição Serrão Confraria do Bacalhau Confraria dos Ovos Moles Confraria Gastronómica do Bacalhau Confúcio Congar Conímbriga Coreia do Norte Coreia do Sul Corvo Costa Nova Couto Esteves Cristianísmo Cristiano Ronaldo Cristina Lopes Cristo Cristo Negro Cristo Rei Cristo Ressuscitado D. Afonso Henriques D. António Couto D. António Francisco D. António Francisco dos Santos D. António Marcelino D. António Moiteiro D. Carlos Azevedo D. Carlos I D. Dinis D. Duarte D. Eurico Dias Nogueira D. Hélder Câmara D. João Evangelista D. José Policarpo D. Júlio Tavares Rebimbas D. Manuel Clemente D. Manuel de Almeida Trindade D. Manuel II D. Nuno D. Trump D.Nuno Álvares Pereira Dalai Lama Dalila Balekjian Daniel Faria Daniel Gonçalves Daniel Jonas Daniel Ortega Daniel Rodrigues Daniel Ruivo Daniel Serrão Daniela Leitão Darwin David Lopes Ramos David Marçal David Mourão-Ferreira David Quammen Del Bosque Delacroix Delmar Conde Demóstenes

Arquivo do blogue

Arquivo do blogue