João, o apóstolo predilecto, é testemunha da morte de Jesus, juntamente com algumas mulheres, de que se destaca Maria, a Mãe. E descreve os momentos principais dos instantes derradeiros que, com alguns elementos dos outros evangelistas, nos oferecem um quadro exemplar da “arte de bem morrer”, da boa morte. A situação não podia ser mais dramática: insultos dos ladrões crucificados, mofa dos soldados romanos, no ofício de algozes e vigias, João e a Mãe de Jesus com o pequeno grupo de mulheres indefectíveis. A ver o acontecimento está o centurião. A dar sinais do sucedido fica o templo e o universo. E, nós à distância que o coração aproxima, contemplamos com devoção o evoluir da vida do Nazareno prestes a findar-se. Ele, o agonizante, é o protagonista. Entregando o espírito entre gritos e lágrimas. Com dignidade. Em liberdade. Com confiança filial.
Jesus toma a iniciativa. De silêncio e respeito, para com o ladrão revoltado e injurioso; de aceitação benevolente do pedido do ladrão arrependido; de entrega da Mãe a João e desta àquela; de reclinar a cabeça, antes de confiar ao Pai o seu espírito. Que maravilha, humanamente falando! Tudo prevê em harmonia. Tudo deixa a indicar que a missão fora cumprida com perfeição. Tudo com enorme dignidade.
E parecia ser tão natural e humano agir de modo diferente. Ao ladrão revoltado dizer-lhe: recebes o que mereces; ao arrependido, ainda bem que reconheces; à Mãe e a João, não se esqueçam de mim e guardem a minha memória; aos soldados vigilantes, satisfazer-lhes o desejo vencendo o desafio. Mas a atitude de Jesus manifesta a novidade do ser humano tão diferente que “transpira” de divino. Não desce da cruz, dando provas de um amor inexcedível e da justeza da opção tomada livremente; não se preocupa pela sua memória efémera (havia previsto outra presença na ceia e no mandamento novo); não retribui os ladrões com repreensões e censuras; não condiciona a natureza e demais elementos da criação, mantendo-os fora do que lhe estava a acontecer. De facto, Deus humanado em Jesus é totalmente diferente. O episódio do Calvário manifesta-o claramente. E fica como símbolo emblemático para todo o sempre. Olhar para ele é ver o visível e admirar o Invisível. Vêem-se dores, descobrem-se amores. Vêem-se trevas, descobrem auroras da Páscoa. Vêem-se lágrimas de desolação, descobrem-se sinais de júbilo e consolação. Só a fé no Crucificado/Ressuscitado abre o acesso a esta realidade nova.
“Tudo está consumado”, isto é, tem o sumo de Jesus, a sua energia vital, o seu amor de reconciliação, a sua solidariedade definitiva. Em vez de divisórias, como as do véu do Templo e tantos outros muros e obstáculos, surgem pontes de união e mãos estendidas de comunhão; em vez de vidas acomodadas na autossuficiência, brotam atitudes de entrega generosa e heroica; em vez de horizontes fechados no tempo fugaz, desvenda-se o futuro de esperança que emerge no presente em gestos de caridade radical. O “sumo” de Jesus está agora nas nossas mãos e pretende revitalizar as nossas energias de cansados peregrinos da vida autêntica, de sonhadores/construtores de um mundo melhor. Ele é verdadeiramente para nós con-sumo.
O centurião e seus acompanhantes ao verem o sucedido fazem uma declaração de fé reconhecida: “Este era verdadeiramente Filho de Deus”. Eles, os representantes do poder opressor que havia condenado Jesus como subversivo, além de outras razões invocadas pelos judeus; eles, os vigilantes das atitudes do agonizante que, em desabafo suplicante, se queixava da sede ardente que o atormentava; eles os que faziam mofa e gestos ofensivos e não davam quaisquer sinais de pena compassiva. O olhar levou-os mais longe e tocou-lhes o coração. E o reconhecimento surge espontâneo: O Filho de Deus morre, após sofrimento atroz com gritos e lágrimas de dor.
A narrativa de João, afirma L. Manicardi (no livro Comentários à Liturgia, ano b, pág. 65), “mostra a paixão daquele que é o revelador do Pai em todos os seus gestos e atos, de modo que a paixão se assemelha a uma entronização real; a crucificação, a uma elevação; e a morte, a um acontecimento glorioso”.
Visão grandiosa, diremos, própria da fé em Cristo Senhor que mostra a força do amor de doação incondicional por cada um/a de nós, por toda a humanidade, pela criação inteira. Com liberdade plena, a tudo se sujeita, tal o amor que nos tem.
Jesus assume livremente a morte, não por ser inconsciente ou por vontade de sofrer por masoquismo ou vanglória. Mas para levar por diante a realização do projecto de salvação de Deus que brilha na sua relação filial com Ele, na comunhão de todos seres humanos com Deus e entre si, no respeito e cuidado pela criação, obra admirável do Criador confiada à solicitude do nosso cuidado. É uma liberdade obediente, pois lança raízes na verdade, sabe o que quer e prossegue-o até às últimas consequências; é uma liberdade do desejo, expressa na atitude ardente de fazer a ceia de despedida dos discípulos e no grito da sede na agonia; é uma liberdade de doação que gera vida e comunhão.
“A glória do amor vence a morte e ressignifica-a, fazendo-a ocasião de um dom… A cruz é elevação e juízo sobre o mundo, é ir para o Pai, é um êxodo em direcção ao Pai. Uma Páscoa, uma passagem deste mundo para o Pai”, afirma Manicardi na obra citada.
A semente para ser fecunda não pode continuar no celeiro, tem de ser lançada à terra e passar por fases sucessivas de vida crescente. Também os seres humanos. O caminho está aberto. E nós somos os caminhantes, os peregrinos que vivem já, em primícias, o que desejam alcançar. Há trevas a superar e silêncios a viver. Até que chegue a aurora da ressurreição feliz.