Reflexão de Georgino Rocha
Georgino Rocha |
Jesus está no início da sua vida pública. Como bom judeu, vai à sinagoga onde fala abertamente da novidade que traz em nome de Deus e “limpa” os espíritos de pessoas que manifestavam sinais de forças estranhas e maléficas. Participa na oração oficial, assume o direito à palavra e prega com autoridade. Da sinagoga, espaço religioso, desloca-se para a casa de Simão e André. Deslocação indicativa das suas preferências pela vida quotidiana: encontros no lago, em casas de família, nos caminhos públicos, em refeições, em diálogos pessoais e locais silenciosos. Deslocação que se mantém como referência para os discípulos: conjugar a oração como relação com Deus Pai e a acção de bem-fazer como rosto do querer deste bom Deus. Jesus, desde o início, deixa-nos este belo exemplo.
A casa de Simão Pedro é “uma vivenda de tipo clã, onde habitavam várias famílias com parentesco próximo, distribuídas por quartos/salas em torno a dois pátios interiores com comunicação entre si… Neles, decorria a vida do clã… Quantas imagens bebeu Jesus dessa vida cheia de colorido para ilustrar as suas catequeses sobre o Reino de Deus!”. Sirva de referência o fermento que leveda a massa e a moeda perdida que é encontrada e provoca grande alegria. (Guia de Tierra Santa, História-arqueologia-bíblia, Verbo Divino, p. 325).
Ao regressar a casa, Jesus ouve falar da doença da sogra de Pedro. Vai ao seu encontro, aproxima-se da doente, toma-a pela mão e levanta-a. Não diz palavra. O gesto fala por si e constitui um modelo de relação sanadora. Parece um ritual de curas, sem magias nem exorcismos. O guia de acção está bem delineado por Marcos (1, 29-39): Ir aonde a se encontra a pessoa doente, colocar-se ao seu nível, sobretudo da disposição com que vive o sofrimento e a dor, tocar-lhe como quem comunica a saúde integral de que é portador, agarrar a mão para a erguer na vida, ajudando-a recuperar a dignidade de poder desempenhar as suas funções normais. O que faz à sogra de Pedro, faz Jesus a tantos outros, como bem registam os Evangelhos.
A acção de Jesus desvenda a nobreza de quem cuida das pessoas doentes, dos profissionais bio-médicos, dos filósofos que buscam sentido para a dor, a fragilidade humana, a morte. Manifesta também o alcance da reflexão teológica que tem a cargo fazer compreender, dentro do possível, a presença da dimensão transcendente e o seu impacto no ser humano e em toda a realidade social. Deixa a claro a solicitude dos discípulos missionários que, pelo testemunho de vida, acompanham até ao limite quem sofre e procura alento e esperança de superação.
A novidade do Evangelho de hoje é que Jesus quer curar-nos. Servindo-se de mediações, como faz parte da economia da salvação e a Igreja não cessa de proclamar. Curar-nos da dor sem-sentido e que, como a Job, nos impele a fazer perguntas lancinantes: «Couberam-me em sorte noites de amargura. Se me deito, digo: Quando é que me levanto? Se me levanto: Quando chegará a noite?; e agito-me angustiado até ao crepúsculo». “Este tomar a palavra perante o mal que invade o seu corpo, afirma Manicardi, Comentário, p. 97, não é sufocado por quem está junto do doente com exortações ao silêncio, ou a «não dizer isso», ou a não perturbar, mas é percebido como um momento importante do penoso processo de assunção da crise existencial que se introduziu na vida do homem”. A linguagem do protesto e de contestação torna-se legítima e desvenda a condição frágil da pessoa doente.
Jesus quer curar-nos da indiferença (parece que “mão invisível” impõs um pacto de silêncio em relação às pessoas que sofrem e ao mundo da dor e da morte) e fazer-nos solícitos, próximos, amigos, capazes de dar razões da nossa humanidade e afirmar a nossa fé. Quer curar-nos do peso da inutilidade, da sensação da sobrecarga, do luto das tarefas deixadas, da estreiteza do horizonte sem esperança. Quer curar-nos de tantas outras feridas que agitam o nosso mundo emocional e perturbam o normal funcionamento do nosso organismo. Quer curar-nos e, embora roídos pela dor, sabermos que Deus vela por nós, nos envolve no seu amor e nos alenta com a sua misericórdia. Quer curar-nos abrindo os braços na cruz e mostrando as chagas do coração, fruto do amor que nos tem e liberta.
O Papa Francisco na «A Alegria do Evangelho», lembra que: “Às vezes sentimos a tentação de ser cristãos, mantendo uma prudente distância das chagas do Senhor. Mas Jesus quer que toquemos a miséria humana, que toquemos a carne sofredora dos outros. Espera que renunciemos a procurar aqueles abrigos pessoais ou comunitários que permitem manter-nos à distância do nó do drama humano, a fim de aceitarmos verdadeiramente entrar em contacto com a vida concreta dos outros e conhecermos a força da ternura. Quando o fazemos, a vida complica-se sempre maravilhosamente e vivemos a intensa experiência de ser povo, a experiência de pertencer a um povo. (EG 270).