domingo, 21 de janeiro de 2018

As trapalhadas com as mulheres na Igreja (II)

Frei Bento Domingues 
no PÚBLICO



1. No passado domingo, o PÚBLICO apresentou uma deliciosa reportagem [1] sobre as celebrações dominicais promovidas e orientadas por leigos, mulheres e homens e um oportuno editorial de Lurdes Ferreira, sobre O tempo dos leigos.
As trapalhadas com os ministérios na Igreja afectam, sobretudo, a celebração da Eucaristia e são uma dificuldade para a hospitalidade eucarística entre as Igrejas cristãs [2]. 
Na reportagem sobre as pessoas que tomam a iniciativa de reunir e formar uma comunidade que não tem ministros ordenados para presidir à Eucaristia, por que razão não poderá o bispo ordenar alguém que é reconhecido como competente e zeloso na formação e no crescimento dessa mesma comunidade?
Edward Schillebeeckx [3] tentou, em 1980, uma solução para o serviço de presidência da Eucaristia, nas comunidades eclesiais. Aparentemente não correu bem, mas ele não desistiu. Esse caminho é, neste momento, aquele que nos pode abrir um presente e um futuro para a vida eucarística das comunidades católicas. Em nome de uma disciplina canónica inadequada, estamos a deixar as paróquias, os grupos e os movimentos católicos à deriva. Insiste-se na celebração da Eucaristia como o sacramento dos sacramentos. Com toda a razão. As comunidades de baptizados têm direito a participar na sua celebração. De facto, arranjam-se cenários para as impedirem. O pretexto é sempre o mesmo: não há padres. Se não há, façam-nos. Não faltam candidatos e candidatas preparados, ou que podem ser preparados, com desejo de receberem esse ministério. Mas não nos moldes actuais. O modelo presente já não pode ser o único. Sem imaginação, sem vontade de alimentar e dinamizar as comunidades católicas, as lideranças da Igreja só se podem queixar de si mesmas.
Importa entender o percurso e as razões deste dominicano holandês para perceber duas coisas: nunca se conformou com os obstáculos criados às reformas propostas pelo Vaticano II, nem se contentou com repetir os seus documentos. Procurou inovar e não se resignou perante os repetidos processos que Roma lhe moveu, sem nunca o conseguir condenar.

2. O primeiro processo foi sobre as suas posições acerca da secularização (1968). Soube, por um amigo, K. Rahner, que estava a ser perseguido. Este tinha recebido do Santo Ofício, sob sigilo rigoroso, o material dessa acusação. Rahner violou esse grave sigilo porque, dizia, o direito natural vale mais do que uma medida eclesiástica! No final do processo, confidenciou-lhe: apesar de tudo, dois terços dos consultores da Congregação partilhavam as ideias do acusado!
O segundo processo foi sobre a sua cristologia (1979). Respondeu a todas as questões que lhe enviaram em 1976, mas em 1978 já estava com outro processo às costas e teve de ir a Roma esclarecer a sua posição.
Nessa altura, eu estava em Roma e conhecia muito bem um dos professores que o iriam examinar. Lembro-me de Schillebeeckx ter declarado: o que se passar nesse interrogatório será comunicado aos jornalistas, o que aconteceu. Não foi condenado, mas recebeu, em 1980, uma carta para novos esclarecimentos. Havia uma distinção entre as posições da Congregação e as de Schillebeeckx, mas não acerca da fé cristã. O pior estava para vir.
Em 1984 surge um terceiro processo. Neste caso sobre os ministérios na Igreja. A questão de fundo era a que ainda hoje nos perturba: o serviço de presidência da Eucaristia. Ele defendia um ministério extraordinário quando não houvesse padre ou bispo para esse serviço. O cardeal Ratzinger, perante o relatório de teólogos holandeses sobre o livro de Schillebeeckx, publicou uma carta que excluía a posição desse teólogo e acrescentava que era um assunto que já tinha sido resolvido no IV Concílio de Latrão: só os padres podiam presidir à celebração eucarística. O assunto estava arrumado. Essa recusa não convenceu o teólogo flamengo, observando que Ratzinger esquecia que o objecto desse Concílio era a exclusão dos diáconos que substituíam o bispo, quando este não podia estar presente.
O professor de Nimega não se dá por vencido e escreve um novo livro no qual já não fala do ministro extraordinário da presidência da eucaristia, mas apela para uma outra categoria, para dizer a mesma coisa. Pede uma espécie de sacramento para os agentes de pastoral, a fim de poderem receber uma ordenação, no quadro dos ministérios sacramentais. Se não desejam soluções extraordinárias, sigam o caminho do que deve ser normal.

3. No final desses processos, perguntaram a Schillebeeckx se tinha sofrido muito. Não, outros sofreram mais. Mas quando soube, por K. Rahner, que estava a ser objecto de um inquérito, sem saber porquê, disse-lhe: “eis a recompensa reservada aos que trabalham, dia e noite, para a Igreja! Depois, tudo aquilo me irritou. Nós, os teólogos, não somos infalíveis, mas há maneiras e maneiras de tratar as pessoas.”
Quando lhe perguntam se tinha pensado em abandonar a Igreja e sair da Ordem, respondeu: “Nunca. Nunca. Pertenço à Igreja Católica Romana, mas isso não significa que esta Igreja não possa cometer erros. De facto, comete. É preciso ter coragem de o dizer. Abandonar a Ordem dos Dominicanos? Nunca pus em questão a escolha que fiz aos 19 anos. Para concluir este capítulo dos processos tenho de dizer: nunca recebi qualquer tipo de condenação até agora e espero nunca receber. Apesar destas aventuras, sou feliz por pertencer à Igreja e à Ordem Dominicana.”

Frei Bento Domingues

[1] Margarida David Cardoso, Ou Rosa dava a “missa” ou a igreja fechava
[2] Cf. Frei José Nunes, Ministérios Laicais no Novo Testamento e primeiros séculos da vida da Igreja, in Laicado Dominicano e a pregação, XII Jornadas Nacionais da família dominicana, Fátima, 8 a 10 de Novembro de 2013; D. Borobio, Ministérios Laicais, Ed. Perpétuo Socorro, Porto, 1991; J. Estrada, La identidad de los laicos, Paulinas, Madrid, 1990; A. Faivre, Naissance d’une hiérarchie, Beauchesne, Paris, 1977; Pierre Bühler, Foi o Papa e não Lutero quem provocou a rutura (entrevista de António Marujo, Revista Expresso, 6 de Janeiro 2018)
[3] Edward Schillebeeckx, Je suis um théologien heureux, Paris, Cerf, 1995

Etiquetas

A Alegria do Amor A. M. Pires Cabral Abbé Pierre Abel Resende Abraham Lincoln Abu Dhabi Acácio Catarino Adelino Aires Adérito Tomé Adília Lopes Adolfo Roque Adolfo Suárez Adriano Miranda Adriano Moreira Afonso Henrique Afonso Lopes Vieira Afonso Reis Cabral Afonso Rocha Agostinho da Silva Agustina Bessa-Luís Aida Martins Aida Viegas Aires do Nascimento Alan McFadyen Albert Camus Albert Einstein Albert Schweitzer Alberto Caeiro Alberto Martins Alberto Souto Albufeira Alçada Baptista Alcobaça Alda Casqueira Aldeia da Luz Aldeia Global Alentejo Alexander Bell Alexander Von Humboldt Alexandra Lucas Coelho Alexandre Cruz Alexandre Dumas Alexandre Herculano Alexandre Mello Alexandre Nascimento Alexandre O'Neill Alexandre O’Neill Alexandrina Cordeiro Alfred de Vigny Alfredo Ferreira da Silva Algarve Almada Negreiros Almeida Garrett Álvaro de Campos Álvaro Garrido Álvaro Guimarães Álvaro Teixeira Lopes Alves Barbosa Alves Redol Amadeu de Sousa Amadeu Souza Cardoso Amália Rodrigues Amarante Amaro Neves Amazónia Amélia Fernandes América Latina Amorosa Oliveira Ana Arneira Ana Dulce Ana Luísa Amaral Ana Maria Lopes Ana Paula Vitorino Ana Rita Ribau Ana Sullivan Ana Vicente Ana Vidovic Anabela Capucho André Vieira Andrea Riccardi Andrea Wulf Andreia Hall Andrés Torres Queiruga Ângelo Ribau Ângelo Valente Angola Angra de Heroísmo Angra do Heroísmo Aníbal Sarabando Bola Anselmo Borges Antero de Quental Anthony Bourdin Antoni Gaudí Antónia Rodrigues António Francisco António Marcelino António Moiteiro António Alçada Baptista António Aleixo António Amador António Araújo António Arnaut António Arroio António Augusto Afonso António Barreto António Campos Graça António Capão António Carneiro António Christo António Cirino António Colaço António Conceição António Correia d’Oliveira António Correia de Oliveira António Costa António Couto António Damásio António Feijó António Feio António Fernandes António Ferreira Gomes António Francisco António Francisco dos Santos António Franco Alexandre António Gandarinho António Gedeão António Guerreiro António Guterres António José Seguro António Lau António Lobo Antunes António Manuel Couto Viana António Marcelino António Marques da Silva António Marto António Marujo António Mega Ferreira António Moiteiro António Morais António Neves António Nobre António Pascoal António Pinho António Ramos Rosa António Rego António Rodrigues António Santos Antonio Tabucchi António Vieira António Vítor Carvalho António Vitorino Aquilino Ribeiro Arada Ares da Gafanha Ares da Primavera Ares de Festa Ares de Inverno Ares de Moçambique Ares de Outono Ares de Primavera Ares de verão ARES DO INVERNO ARES DO OUTONO Ares do Verão Arestal Arganil Argentina Argus Ariel Álvarez Aristides Sousa Mendes Aristóteles Armando Cravo Armando Ferraz Armando França Armando Grilo Armando Lourenço Martins Armando Regala Armando Tavares da Silva Arménio Pires Dias Arminda Ribau Arrais Ançã Artur Agostinho Artur Ferreira Sardo Artur Portela Ary dos Santos Ascêncio de Freitas Augusto Gil Augusto Lopes Augusto Santos Silva Augusto Semedo Austen Ivereigh Av. José Estêvão Avanca Aveiro B.B. King Babe Babel Baltasar Casqueira Bárbara Cartagena Bárbara Reis Barra Barra de Aveiro Barra de Mira Bartolomeu dos Mártires Basílio de Oliveira Beatriz Martins Beatriz R. Antunes Beijamim Mónica Beira-Mar Belinha Belmiro de Azevedo Belmiro Fernandes Pereira Belmonte Benjamin Franklin Bento Domingues Bento XVI Bernardo Domingues Bernardo Santareno Bertrand Bertrand Russell Bestida Betânia Betty Friedan Bin Laden Bismarck Boassas Boavista Boca da Barra Bocaccio Bocage Braga da Cruz Bragança-Miranda Bratislava Bruce Springsteen Bruto da Costa Bunheiro Bussaco Butão Cabral do Nascimento Camilo Castelo Branco Cândido Teles Cardeal Cardijn Cardoso Ferreira Carla Hilário de Almeida Quevedo Carlos Alberto Pereira Carlos Anastácio Carlos Azevedo Carlos Borrego Carlos Candal Carlos Coelho Carlos Daniel Carlos Drummond de Andrade Carlos Duarte Carlos Fiolhais Carlos Isabel Carlos João Correia Carlos Matos Carlos Mester Carlos Nascimento Carlos Nunes Carlos Paião Carlos Pinto Coelho Carlos Rocha Carlos Roeder Carlos Sarabando Bola Carlos Teixeira Carmelitas Carmelo de Aveiro Carreira da Neves Casimiro Madaíl Castelo da Gafanha Castelo de Pombal Castro de Carvalhelhos Catalunha Catitinha Cavaco Silva Caves Aliança Cecília Sacramento Celso Santos César Fernandes Cesário Verde Chaimite Charles de Gaulle Charles Dickens Charlie Hebdo Charlot Chave Chaves Claudete Albino Cláudia Ribau Conceição Serrão Confraria do Bacalhau Confraria dos Ovos Moles Confraria Gastronómica do Bacalhau Confúcio Congar Conímbriga Coreia do Norte Coreia do Sul Corvo Costa Nova Couto Esteves Cristianísmo Cristiano Ronaldo Cristina Lopes Cristo Cristo Negro Cristo Rei Cristo Ressuscitado D. Afonso Henriques D. António Couto D. António Francisco D. António Francisco dos Santos D. António Marcelino D. António Moiteiro D. Carlos Azevedo D. Carlos I D. Dinis D. Duarte D. Eurico Dias Nogueira D. Hélder Câmara D. João Evangelista D. José Policarpo D. Júlio Tavares Rebimbas D. Manuel Clemente D. Manuel de Almeida Trindade D. Manuel II D. Nuno D. Trump D.Nuno Álvares Pereira Dalai Lama Dalila Balekjian Daniel Faria Daniel Gonçalves Daniel Jonas Daniel Ortega Daniel Rodrigues Daniel Ruivo Daniel Serrão Daniela Leitão Darwin David Lopes Ramos David Marçal David Mourão-Ferreira David Quammen Del Bosque Delacroix Delmar Conde Demóstenes

Arquivo do blogue