Festa da Sagrada Família
Lucas, o narrador dos relatos da Infância de Jesus, traz-nos, hoje, o estilo de vida da família de Nazaré, após a apresentação do Menino no templo de Jerusalém. (Lc 2, 22 e 39-40). E a Igreja destaca este estilo de vida como característica peculiar da Sagrada Família, dedicando-lhe a festa que estamos a celebrar, e como foco inspirador de toda a família humana, especialmente a cristã.
De facto, é neste modelo ideal, que os textos evangélicos apresentam, que se vão “desenhando” os valores estruturantes de toda a convivência humana, relacional, conjugal, eclesial; de toda a família em que as relações interpessoais estão marcadas pela vida de “comunhão” no seio de uma comunidade que São João Crisóstomo qualifica de “igreja doméstica”. Feliz expressão que desvenda horizontes novos que mobilizam as melhores energias humanas. Feliz expressão que mostra a riqueza de uma realidade insubstituível, apesar da fragilidade que a constitui. Feliz expressão que alia a seiva que circula nas veias do corpo aos laços da fé, gerando uma harmonia digna do maior apreço.
Hoje, somos convidados a relançar o olhar atento e carinhoso à nossa família de sangue, a admirar o que lhe dá vigor e consistência e é fruto do nosso cuidado constante, a reconhecer que há sombras a iluminar e limites a superar. Numa atitude sadia, sem ingredientes de fantasia adolescente nem de desilusão acabada. O Natal ensina-nos a viver um realismo confiante.
Lucas condensa o que acontece a Jesus na família de Nazaré em duas simples frases: “ O Menino crescia, tornava-se robusto e enchia-se de sabedoria. E a graça de Deus estava com Ele”. Resumo denso e eloquente, onde brilha a luz que irradia para todo o mundo; onde, para evitar dispersões, se resume o núcleo da novidade cristã, que convém saborear e transmitir.
A família de Nazaré mostra-nos o valor do acolhimento que se abre à surpresa de Deus e, como humana que é, dá o seu consentimento livre após o diálogo de clarificação indispensável. O Evangelho de João faz-nos ver a origem da decisão de Deus quando o Seu Verbo de faz carne. Lucas e Mateus narram com delicados pormenores o que acontece a Maria e José. E, segundo eles, Jesus é o Mestre do acolhimento incondicional. Que oportunidade de mensagem quando tantas atitudes mostram fronteiras fechadas, casas trancadas, corações blindados. A par de tanta abertura e solidariedade, a sociedade e a Igreja, a família e as associações humanitárias ainda persistem na discriminação e na exclusão. Nem todas por igual, é certo. Mas com acentos bem notórios e indignos da nossa dignidade comum.
Maria e José acolhem-se mutuamente: como noivos que aguardam o tempo necessário para a vida em comum; como responsáveis pela vida nascente da parte de Deus em Maria; como fiéis cuidadores do Menino e de suas múltiplas necessidades. O relato deste cuidado traz-nos um fio de ouro a brilhar nas peripécias que vão ocorrendo e nas atitudes de paciência humilde e de coragem confiante que vão cultivando.
Da experiência inicial de acolhimento mútuo, abrem-se aos outros, a Isabel e a João Baptista, a Simeão, a Ana e a tantos nazarenos que lhe batem à porta ou encontram na rua. A vizinhança constitui um bom espaço para o exercício deste valor humano. E a família alargada, também, sobretudo os idosos que o Papa Francisco considera, por vezes, “exilados ocultos” nas suas casas ou na dos filhos, em lares e residências.
Do aconchego na gruta de Belém, apesar da pobreza inclemente, e silêncio contemplativo e da admiração suscitada pelo que se diz do seu Menino, são forçados a partir para o desterro, a enfrentar a intempérie do deserto, a abrigar-se em qualquer recanto do país de destino. São induzidos a regressar à terra natal, a estar em Jerusalém e satisfazer as prescrições legais, a debater-se com desencontros numa das idas ao Templo com o seu Menino, agora adolescente.
As fronteiras do seu coração iam alargando. E as margens do possível atingem uma medida única: a de ver o Filho deixar a casa familiar e começar a sua missão em público, como profeta itinerante nas terras da Galileia. Atitude quem nem os outros familiares compreendem. Só se aceita por amor confiante e dedicação exclusiva porque “a graça de Deus estava com Ele”, afirma Lucas na conclusão da leitura de hoje.
Maria, sua Mãe, deixa-nos um eco da sua estranheza: “Filho, porque procedeste assim connosco?” Pergunta a que Jesus responde com outra que desvenda a nova dimensão que já vive e que se propõe anunciar: “Não sabíeis que devo estar na casa de meu Pai?”. O caminho para Jerusalém deixa-nos indicações preciosas e claras sobre este ponto.
Os conterrâneos de Nazaré fixam-se no tempo em que vive com eles, ia à sinagoga, trabalha e convive. “Nascido de Maria, Jesus de Nazaré andou pelos caminhos de terra da humanidade, afirma em síntese de retrato que alarga os tempos iniciais.
Sim é Ele, podemos dizer nós com fé de convicção. A sua Família ficará a ser para sempre o referencial para a nossa humanidade e os seus valores a iluminar os nossos esforços generosos em lhes darmos rosto irradiante de beleza, amor e paz. E a Igreja, como mãe solícita, sobretudo das pessoas mais necessitadas, recomenda o Papa Francisco: “deve pôr um cuidado especial em compreender, consolar e integrar”, evitando agravar a sua situação já tão sofrida. (AL 49).
A família de Nazaré ensina-nos a ser agradecidos. Tal como Jesus tem em José e Maria os seus referentes iniciais, assim todo o ser humano necessita absolutamente de os ter. Não pode haver orfãos biológicos, sociais, culturais ou religiosos. O sentimento de pertença está primeiro. O olhar sorridente da mãe e os braços robustos do pai ajudam a estrurar a personalidade de cada um/a.
Em família, Jesus crescia em humanidade, robustecia-se em sociabilidade e enchia-se de sabedoria. Oxalá se possa dizer o mesmo de todas as crianças do mundo porque beneficiam do suporte de um ambiente familiar tão consistente que os pais e avós lhes proporcionam.
Georgino Rocha