Jesus recorre à pergunta fechada para envolver os que o seguiam e vigiavam e não os deixar apenas como ouvintes indiferentes ou críticos. Tem consigo a elite de Jerusalém que vivia do templo e para o templo, designadamente os sumos-sacerdotes, os escribas e os anciãos do povo. Estão também os discípulos e numerosa multidão de que faziam parte publicanos e prostitutas, marginalizados e proscritos. O contraste vai ser posto em realce na parábola dos dois filhos que respondem ao convite do Pai de modos diferentes, convite para irem trabalhar na vinha. O primeiro diz espontaneamente que não, mas depois pondera, arrepende-se e vai. O segundo, pelo contrário, mostra-se disponível e afirma que sim, mas não aparece, esquece a resposta dada, não é coerente nem honrado. Dois tipos de reacção que constituem um espelho muito actual para tantas situações.
“Qual dos dois fez a vontade ao Pai?”. O primeiro, respondem os versados nas leis e tradições religiosas. E Jesus “atira-lhes” a doer no breve comentário que faz. Pois é, a atitude do primeiro prolonga-se nas pessoas como os publicanos e prostitutas, dizem que não ao convite amoroso de Deus e levam uma vida desregrada, mas arrependem-se a tempo, convertem-se, choram os seus pecados em atitudes de serviço humilde e gratuito. A alusão é clara à diversidade dos presentes na multidão que o seguia. Só faltou dizer, assumindo a versão de Mateus (Mt 21, 28-32), são estes que estão aqui e muitos outros.
O proceder do segundo espelha a atitude da gente da religião, dos funcionários do templo, dos fiéis observantes de ritos e preceitos, dos inquisidores das práticas, porventura, desviadas. Jesus diz o suficiente para suscitar uma reacção violenta que só não foi mais longe porque os sumos-sacerdotes temiam o povo que estava abertamente do lado de Jesus; diz o suficiente para denunciar a incoerência dos que ouvem falar da justiça e são desonestos, dos que vêem o exemplo dos profetas da sobriedade e vivem na abundância doentia e esbanjadora, dos que deixam adormecer a consciência e são insensíveis e indiferentes à miséria alheia, às desigualdades gritantes.
O Papa Francisco ao falar sobre a esperança a 27 de Setembro de 2017 afirma que é esta virtude que move o coração a buscar um futuro melhor, mesmo no meio das amarguras da vida; é a “virtude daqueles que não se contentam com as garantias alcançadas, mas estão sempre buscando um bem mais precioso, capaz de mudar este mundo. Por isso, o pior obstáculo para a esperança é o coração vazio”. Quem não entende o Papa Francisco?
A parábola dos dois filhos é a primeira de três que Jesus narra na esplanada do Templo. As outras intensificam o desafio agora lançado. E referem-se aos vinhateiros homicidas dos enviados do dono da vinha e aos convidados para o banquete nupcial que o recusam por terem outras ocupações, o que indigna muito o rei que não desiste da festa do seu filho enchendo a sala com os que se encontravam na encruzilhada dos caminhos. São parábolas tremendas dirigidas aos dirigentes religiosos em que Jesus faz a leitura do que está a acontecer e esboça o retrato de quem se fecha à novidade de Deus, ancorando-se na força da tradição, no império das leis e do sempre foi assim, na inércia e no medo à mudança, na cultura da não verdade.
Fazer a vontade de Deus Pai é cuidar da sua vinha nas diferentes estações do ano, conhecer os ritmos do tempo e dispor dos meios adequados, estar pronto para a intempérie e ousar a medida certa e oportuna. A vinha de Deus é o vasto mundo e as suas múltiplas organizações, os dinamismos culturais e os movimentos dos povos, a gestão quotidiana e a política local, a família e a unidade de vizinhança, a vida quotidiana de cada pessoa, sobretudo fragilizada pela idade ou pela doença, a Igreja e suas comunidades e movimentos.
Jesus aprova a resposta certa dos dirigentes do povo, mas reprova o seu procedimento. O que está em causa não é dizer palavras, mas fazer acções, náo é alinhar com o politicamente correcto publicitado nos meios de comunicação e em conversas de bem pensantes, não é deixar correr porque alguém há-de tomar a iniciativa e avançar com o que diz respeito a todos/as ou esperar que um dia as coisas se resolvam por inércia ou algo semelhante. Pior ainda será agir de modo oposto ao que se anuncia e propaga, como os dois irmãos da parábola, apreciando mais o que parece e agrada no momento e adiando a decisão pessoal, consciente e livre. Assim, cresce a desumanização, empobrece a educação, afunila-se a responsabilidade, esquece-se o bem comum e o desenvolvimento de cada um/a, de forma progressiva e integral.
O primeiro bispo de Setúbal, D. Manuel Martins, falecido a 24 de Setembro de 2017 (domingo passado) adoptou francamente um estilo de vida e de acção que o credenciam como praticante privilegiado na área da coerência evangélica e do serviço solidário, designadamente a quem mais precisa. Deixa a marca de quem: “Não se resigna, intervém. Não implora auxílio do poder, exige o que os direitos requerem. Não adormece as consciências, desperta-as para se darem ao respeito. Não se contenta com reprovar, acusa e denuncia as injustiças. Não fala da pobreza, combate-a”. Este depoimento pertence a Carlos Azevedo, bispo português, delegado do Conselho Pontifício da Cultura (Santa Sé); depoimento escrito na página do seu Facebook. A sua vida pode assemelhar-se a um farol que ilumina quem deseja percorrer os caminhos da justiça e da paz; de quem quer ser coerente, fazer por obras a vontade do Pai e não apenas dizer palavras inconsequentes. Deixemo-nos iluminar e avancemos!
Georgino Rocha