Não, não é um delírio à Frank Herbert ou à Philip Dick. O útero artificial deixou a estratosfera da ficção científica e aterrou na realidade. Uma gestação mecanizada e sem a necessidade do corpo da mulher já não é uma impossibilidade. Já estão a ser feitas experiências com bezerros criados em úteros artificiais que se assemelham às máquinas que suportam as pessoas em coma: bombas mecânicas, tubos e seringas bombeiam ar e injectam os nutrientes que permitem o crescimento do feto.
Mas a pergunta fundamental não está no campo da possibilidade, está no campo da legitimidade. A questão “é possível criar um ser humano num útero artificial?” é insignificante ao pé do dilema “é legítimo criar um ser humano num útero artificial?”. A ciência não se legitima a si própria.
Se servir para salvar ou proteger de forma mais tranquila a vida dos chamados bebés prematuros, esta máquina pode ser uma dádiva, um avanço notável da medicina. Contudo, se for usada como barriga de aluguer dos caprichos dos Ronaldos e das Kardashians, esta máquina pode ser uma porta para um inferno pós-humano onde o ser humano passa a ser uma mercadoria como outra qualquer.
Neste cenário, o útero artificial deixa de ser medicina e passa a ser distopia, deixa de ser um instrumento que auxilia uma vida já criada (o bebé prematuro) e passa a ser um portal para a criação de seres humanos ex nihilo. Ou seja, estamos à beira de um pesadelo ético (o negócio das barrigas de aluguer torna-se ainda mais fácil porque a “mãe” passa a ser uma relíquia), de um pesadelo político (um útero mecânico é o sonho molhado dos nazis) e de um pesadelo criminal - se o comércio de seres humanos e de órgãos já é uma realidade, como será no dia em que as máfias poderão simplesmente criar seres humanos para vender ou para servirem de estufas de órgãos humanos para colher e vender?
Sem grande alarme colectivo, estamos a caminhar para uma sociedade em que o ser humano pode ser comercializado ao abrigo das leis do mercado. O que não deixa de ser curioso: a resistência ao comércio de bens inertes (vulgo “capitalismo”) coabita lado a lado com a indiferença perante o comércio de seres humanos. Mas, já que invoco o conceito de “ser humano”, convém prosseguir com uma pergunta: será que um bebé criado ex nihilo numa máquina ainda pode ser considerado um “ser humano”? Uma pessoa que entra neste mundo através de uma máquina e não através de outro ser humano ainda pode ser considerado “ser humano”?
Até Jesus precisou de Maria para entrar neste mundo. O Salvador não apareceu do nada num portal de metal à ficção científica; Ele precisou de Maria, portal humano. Julgo que até os não crentes percebem este ponto de forma intuitiva. E também não é preciso acreditar no conceito cristão de “alma” para perceber que nós não somos apenas matéria, não somos compostos apenas de carne e fluidos. Durante a vida intra-uterina, a nossa personalidade começa a ser formada através da interacção com a nossa mãe. No vácuo da máquina, que tipo personalidade pode ser desenvolvida?
Este debate devia estar a ser feito, mas o tema tem sido desprezado. Porquê? A meu ver, a razão para o silêncio é a seguinte: o útero artificial desarruma os termos actuais do debate do aborto. Os defensores da “IVG” tentam tudo para desumanizar o nascituro, tentam reduzir ou menosprezar a vida intra-uterina, para assim retirar a carga odiosa do acto. Ora, o útero artificial vem mostrar é que “aquilo” não é um “mero amontoado de células”. Moral da história? Paradoxalmente, o útero artificial vem mostrar que os críticos do aborto sempre tiveram razão. O problema é que abre uma nova caixa de Pandora.
Li na Renascença
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