O amor de Deus misericórdia surge como núcleo central na vida e no agir do Papa Francisco. É um amor que se reflecte, com intensidades diversas, em cada pessoa e na humanidade, em cada criatura e na criação, em cada discípulo missionário e na Igreja em conversão pastoral. O rosto deste amor dinâmico fica “plasmado” na simplicidade do viver quotidiano e das homilias na missa celebrada na Casa de Santa Marta, nos gestos proféticos e nos documentos escritos, sobretudo a “A Alegria do Evangelho”, o “Rosto da Misericórdia”, o “Louvado Sejas” e a “A Alegria do Amor”.
O estilo e a proposta do Papa têm despertado, de modo geral, a simpatia da sociedade civil, sobretudo da comunicação social e de alguns fóruns políticos e económicos, o acolhimento entusiasta pelo conjunto da Igreja, a correspondência lógica por muitos sectores da vida missionária e a discreta anuência de minorias que chegam a manifestar-se como oposição. Estou convencido da urgência de ir avivando a memória comunitária para esta riqueza reformista e para a arte pastoral que exige a harmonia de tesouro tão sublime estar entregue a vasos de barro, sempre frágil, apesar da qualidade da moldagem e cosedura. Limito-me à “A Alegria do Amor”, recorrendo ao meu bloco de notas em que fui apontando algumas referências, após a sua publicação, a 19 de Março de 2016; notas que serão continuadas proximamente.
“O significado do matrimónio cristão e o anúncio da sua beleza pela Igreja não mudaram”, afirma o Cardeal Kevin Farrell, prefeito do Dicastério para os Leigos, a Família e a Vida; mas “devem mudar a pastoral, o cuidado, a atenção da Igreja em relação às famílias, especialmente as mais necessitadas de ajuda, de apoio e de acompanhamento”. E aduz como razão principal a melhor compreensão do sentido de crescimento e aprofundamento destas realidades e a evolução do contexto sociocultural envolvente.
Esta observação pertinente aponta claramente o que está em causa: O evangelho do matrimónio sacramental e da família cristã, que a Igreja quer anunciar com fidelidade crescente numa sociedade plural, e o realismo das situações que não param de surpreender e de interpelar. A fragilidade reveste-se de muitos rostos e as “feridas” de muitas cicatrizes. A Igreja assume-se cada vez mais como mestra, e sobretudo como mãe e samaritana, companheira solícita nos caminhos da humanidade. E Farrel evoca a memória de João XXIII que, em relação ao Concílio Vaticano II, dizia: “Não é o Evangelho que muda; somos nós que o entendemos cada vez melhor.
“A Alegria do Amor” corre um sério risco: o de ficar reduzida ao problema do acesso à comunhão eucarística dos divorciados recasados; seria como a “A Vida Humana” de Paulo VI que, quase só, é lembrada pela questão da pílula ou da contestação surgida por um sector aguerrido. E esta encíclica do Papa Montini tem um riqueza extraordinária que o Papa Francisco cita várias vezes; riqueza complementada com a mensagem dirigida às Equipas de Nossa Senhora e por elas à Igreja, em 1970, em que desenvolve a pedagogia do acompanhamento pastoral. Sem este, não há “revolução do amor” que tenda para a sua plenitude: ser sacramento do amor de Jesus Cristo pela Igreja, pela humanidade.
As famílias “não são um problema, são principalmente uma oportunidade”, garante o Papa Francisco aquando da sua viagem apostólica a Cuba. Oportunidade de contemplar o sonho de Deus configurado na alegria do amor humano, em todo o seu esplendor e em todas as suas “noites” sofridas e amargadas. Oportunidade de reexaminar a atenção amiga, não abusiva, de quem está próximo e começa a viver tensões difíceis no relacionamento conjugal, de quem é chamado a ser mediador/conciliador (se possível), de quem, por missão apostólica, tem a incumbência de acolher, acompanhar e integrar os que desejam sinceramente apoio para o seu caminhar e sentido para as suas buscas e canseiras. Oportunidade que é compromisso em todos os níveis da organização da Igreja.
As questões canónicas do matrimónio devem ser tratadas pela via jurídica, segundo as normas do direito canónico; e as questões de consciência por via do discernimento, diante de Deus, em oração e em diálogo de acompanhamento pastoral. Esta afirmação inspira-se na “Alegria do Amor”, n.º 300 e é da autoria de Juán Massiá, teólogo e padre jesuíta,
Felizmente alguns passos se têm dado neste sentido. Mais visíveis no campo jurídico do que no da pastoral. Mas a realidade clama por maior atenção e diligência. Sobretudo a situação dos que se encontram na situação de casados de novo civilmente e querem progredir na integração eclesial e viram declarada inconsistente a sua pretensão de nulidade sacramental.