Crónica de José Pacheco Pereira no PÚBLICO
«Por tudo isto, seja bem-vindo a Portugal, papa Francisco, e fale como tem falado, que também nos ajuda. Pode usar, aliás, as palavras de um seu companheiro jesuíta, o Padre António Vieira: “Entre todas as injustiças, nenhumas clamam tanto ao Céu como as que tiram a liberdade aos que nasceram livres e as que não pagam o suor aos que trabalham.”»
A visita do Papa a Portugal é uma visita importante para todos, católicos, crentes de outras religiões, agnósticos e ateus, a minha categoria. O Papa é o líder religioso mais importante do mundo, tendo em conta que os muçulmanos sunitas não têm uma estrutura hierárquica e os xiitas, que a têm, estão confinados a uma pequena parte do mundo. Na cristandade ortodoxa vários patriarcas são personalidades de relevo, assim como vários dirigentes e proeminentes religiosos do mundo da Reforma, mas, de novo, a sua importância e diversidade não se podem comparar com a direcção unitária da Igreja Católica Apostólica Romana, quer do papado, quer da hierarquia de cardeais e de bispos. Sendo assim, a visita do Papa é um evento de primeiro plano na vida portuguesa, como já o foram as anteriores visitas papais.
No caso português, a visita é ainda mais importante pelo facto de a maioria dos portugueses serem católicos, muitos praticantes, e a Igreja portuguesa ser muito relevante em todos os planos da sociedade, um dos poucos poderes fácticos que tem sobrevivido ao crescimento do Estado. Acresce que “Fátima” e tudo o que este nome invoca é um lugar de crença e fé para muitos portugueses, e essa fé deve ser respeitada, mesmo que todos os lados mundanos e políticos de Fátima não mereçam o mesmo respeito, mas, pelo contrário, escrutínio e debate público.
O papel da Igreja Católica é muito diferenciado em várias partes do mundo e, visto de fora, nem sempre é unívoco, umas vezes “liberta”, outras não. Um exemplo típico dessas contradições encontrava-se na Igreja brasileira nos anos 60 e 70 do século XX, progressista no plano político em muitas zonas pobres, defendendo a reforma agrária, mas ao mesmo tempo opondo-se ao planeamento familiar, à distribuição de preservativos e condenando a interrupção voluntária da gravidez. Em muitos aspectos, a Igreja é estruturalmente desigual para os homens e as mulheres, hostil às novas realidades familiares, às comunidades LGBT, fechou os olhos aos abusos e crimes de muitos padres e bispos em matéria de pedofilia e de abusos sexuais a menores, e mantém sob uma nuvem da culpa muitos homens e mulheres que querem conciliar a sua fé com as suas opções individuais de vida.
Em muitos países, o apetite pelo poder aproximou e aproxima a Igreja do poder político em ditadura, e Portugal foi disso um bom exemplo. Apesar de alguma honra da Igreja ter sido salva pelos católicos que, começando no bispo do Porto, lutaram contra a ditadura, a Igreja foi, com as Forças Armadas, um dos seus principais sustentáculos, assumindo um papel activo de legitimação e apoio político, fechando os olhos à repressão, à violência do regime e à guerra colonial. Para quem olha hoje com repulsa para o fundamentalismo muçulmano e para os seus crimes, não pode esquecer que a Igreja cometeu crimes idênticos, e a palavra “idênticos” é mesmo rigorosa.
No entanto, seria injusto ignorar que a Igreja evoluiu, umas vezes por dentro, mas muitas vezes por fora, obrigada pelo “mundo”. No entanto, essa capacidade de evolução é algo que deu à Igreja Católica e a muitas igrejas cristãs (não todas) a possibilidade de serem uma força que hoje melhora a sociedade como reserva moral, de cultura e de “caridade” no verdadeiro sentido do termo. Hoje, em sociedades como a portuguesa, a Igreja tem um papel positivo e não custa a um não crente admitir que a sua ausência significaria um empobrecimento social muito significativo. Esse papel foi essencial nos anos de lixo do “ajustamento”, em que as instituições da Igreja, a Cáritas, por exemplo, perceberam melhor do que ninguém a devastação desnecessária que estava a ser feita a muitas pessoas e famílias. E, como poucos, falou bastante mais alto do que a hierarquia, a denunciar aquilo que muitos governantes entendiam como sendo “efeitos colaterais” menosprezáveis da criação da Singapura portuguesa.
Partidos como o PSD foram fundados com enorme influência da doutrina social da Igreja e, embora tal legado tenha em grande parte desaparecido na sua actual direcção, mais próxima das novas maçonarias de interesses, ele esteve lá na sua génese. Quando Sá Carneiro escreveu que o partido que criava considerava o “trabalhador como sujeito e não como objecto de qualquer actividade” e que o “homem português terá de libertar-se e ser libertado da condição de objecto em que tem vivido, para assumir a sua posição própria de sujeito autónomo e responsável por todo o processo social, cultural e económico”, é da doutrina da Igreja que vêm estas palavras. O mesmo se passava na fase democrata-cristã do CDS, antes da deriva “popular”, e mesmo em partidos como o PS e o PCP existe uma influência dos olhares cristãos e de vidas que assumem o papel de serem “testemunhais”.
E depois há o Papa, este papa Francisco. Nada explica melhor o sucesso adaptativo e o peso da história numa instituição com 2000 anos do que a sucessão dos dois papas vivos, o alemão Ratzinger, Bento XVI, e o argentino Bergoglio, Francisco, o intelectual e teólogo e o jesuíta amador de futebol. Não esqueçam o “jesuíta”. Aparentemente não podiam ser mais diferentes, mas devemos perguntar-nos como é que o mesmo colégio eleitoral faz estas escolhas tão diferentes num período de tempo tão curto? É porque sendo diferentes moldam a Igreja em suas partes distintas e cursos variados: Bento XVI veio do progressismo do Vaticano II para o combate pela ortodoxia, mas um combate que usava as armas intelectuais da Igreja — e se há instituição que tem essas armas é mesmo a Igreja, e não são só os dominicanos, são também os jesuítas... —, e Francisco conhecia um mundo que não era o de Bento, mas o da América Latina, com a sua enorme pobreza e injustiça.
A direita gostava de Bento XVI e detesta Francisco, a esquerda vice-versa. Mas os dois são uma face mais comum do que pode parecer. Sem a acção teológica de Ratzinger, Bergoglio não podia fazer as reformas que pretende, nem falar como fala, mas no final a Igreja dará passos para a frente. Embora eu não me cuide dos passos da Igreja, que não é a minha casa, preciso da voz da Papa para ajudar no combate contra a ganância, a injustiça e a miséria, porque é uma voz cuja autoridade moral pode melhorar o mundo e a vida das pessoas. Para quem não acredita no paraíso celeste, e deseja viver numa sociedade democrática em que não é qualquer teleologia que define a política, é a melhoria da vida terrestre que conta. E hoje a voz do papa Francisco denuncia o que deve ser denunciado e apoia o que deve ser apoiado. Nalgumas coisas não é assim, mas não são as mais importantes, e a diferença de importância para fora é bastante significativa.
Por tudo isto, seja bem-vindo a Portugal, papa Francisco, e fale como tem falado, que também nos ajuda. Pode usar, aliás, as palavras de um seu companheiro jesuíta, o Padre António Vieira: “Entre todas as injustiças, nenhumas clamam tanto ao Céu como as que tiram a liberdade aos que nasceram livres e as que não pagam o suor aos que trabalham.”