sexta-feira, 12 de maio de 2017

O que eu penso sobre Fátima (3)

Crónica de Anselmo Borges no DN 



1 O sofrimento das pessoas tem de ser compreendido e respeitado. Perante o sofrimento, os calvários todos do mundo, eu inclino-me, porque me comovo profundamente.
Mas, depois, porque os crentes muitas vezes não foram informados sobre o verdadeiro Evangelho, notícia boa e felicitante da parte de Deus, concebem Deus à maneira de um tirano ou de um déspota, que precisa de sangue e submissão, fazem promessas e, concretamente em Fátima, vão pagá-las, de joelhos ou arrastando-se, sempre com aquela ideia de que talvez Deus se comova. Aqui, há uma pergunta simples: que pai ou mãe sadios, para darem pão e saúde aos filhos, precisam que eles se ajoelhem e se arrastem?
Fátima precisa, pois, de ser evangelizada. E a primeira evangelização é a evangelização de Deus, da imagem que fizemos dele. Jesus veio "evangelizar" Deus. Afinal, Deus é mesmo Pai e Mãe, e o seu único interesse consiste na alegria e na realização verdadeira e plena dos seus filhos. O único sacrifício que Deus quer é o que é exigido para lutar pela dignidade de todas as pessoas e pelos seus direitos.
E Deus não precisa de promessas e que queimem toneladas de cera, tanto mais quanto Ele quer que a natureza que ele criou seja preservada. Que se faça, portanto, tão-só a promessa da conversão, da mudança de vida. Porque o mundo está ameaçador e perigoso e, se não houver mudança nas atitudes, se não houver diálogo, se o Deus da Vida continuar a ser substituído pelo deus-dinheiro, então, como diz o Papa Francisco, a terceira guerra mundial em curso, embora aos pedaços e episódios, pode tornar-se explosiva, com a ameaça até do nuclear. Esse é que pode ser o inferno que os pastorinhos dizem ter visto.
O único sacrifício que vale a pena, isto é, que tem valor, é o que se faz para acabar com o sofrimento e os muitos calvários do mundo e para incentivar a justiça e o amor. Como disse o famoso bispo do Porto, D. António Ferreira Gomes, em diálogo com Óscar Lopes, depois de denunciar a religião das promessas, a religião utilitária, "o limiar diferencial da religião cristã começa quando alguém se debruça sobre o outro, quando alguém se volta para aquilo que o transcende, seja o outro neste mundo, seja o Outro absoluto (a relação ao Outro absoluto é exactamente também a relação ao irmão)". O então bispo do Porto era muito cauteloso em relação a Fátima e aos seus perigos de desvio da autêntica religião cristã, como, por exemplo, quando se fala dos manipulados "segredos", observando: "Abaixo de Fátima ainda há a magia." Um modo provocante de apelar à dignidade que deve existir na religião.

2 Estou convicto de que se alguém viesse, por exemplo, da Índia e não tivesse nenhum conhecimento do cristianismo, ao assistir a certas celebrações em Fátima e noutros lugares em honra da Virgem ficaria com a ideia de que Maria é uma deusa. Causa realmente impressão o lugar tantas vezes central que é dado à figura de Nossa Senhora no catolicismo. Como se explica esse marianismo, que pode desembocar numa quase mariolatria? Isso dá-se de modo muito impressivo concretamente em Portugal, mas não só. Essa realidade tem uma expressão significativa nas manifestações de Nossa Senhora em muitas partes do mundo: só entre 1928 e 1975 contaram-se mais de 300 visões e o Dicionário das Aparições da Virgem, de R. Laurentin, de 2010, dá conta de 2567 encontros de videntes com Maria.
Julgo que esses excessos encontram até certo ponto alguma explicação no patriarcalismo e na ausência do feminino no catolicismo. Assim, quando se fala de Deus, é no masculino: Deus é Deus, no masculino; as três Pessoas da Santíssima Trindade dizem-se no masculino: Pai, Filho, Espírito Santo. A hierarquia é masculina: o papa, os bispos, os padres, os diáconos, os sacerdotes - as mulheres têm funções subalternas. A própria socialização religiosa dá-se no masculino: mesmo uma menina será baptizada por um homem (padre, diácono ou bispo), já jovem ou mulher confessar-se-á a um sacerdote, que verá também na presidência das celebrações. Mas a situação agrava-se quando se olha para a cultura tradicional, concretamente, portuguesa. A figura do pai representa a ordem e a lei. Muitas vezes se ouviu a mãe a dizer aos filhos, no caso de desobediência ou transgressão: "Eu vou dizer ao vosso pai!..." A transferência dessa imagem temerosa do pai terreno para Deus enquanto Pai criou timidez face à figura de Deus, que a figura materna de Maria vem compensar, a ponto de ser posta a dizer heresias como esta: "Eu seguro a mão do meu Filho Jesus para não descarregar o castigo sobre o mundo e destruir a humanidade" e a pôr os cristãos a invocá-la contra Deus e o medo que Deus provoca.
As pessoas recorrem a Maria como a Mãe, aquela que tem compreensão e traz ternura e se compadece. Pertence a Frei Bento Domingues a definição inultrapassável de Fátima: "É o cais de todas as lágrimas dos portugueses." Pergunto frequentemente: o que seria a Igreja em Portugal sem Fátima? E a política, em tempos de crise, sem essa almofada, esse colo aconchegante? Não foi a Fátima que as mães foram desabafar durante a Guerra Colonial? Não é lá que os portugueses vão desabafar em tempos de crise? Mas este é um fenómeno do catolicismo universal, como mostrou a National Geographic, na sua edição americana de Dezembro de 2015, com uma bela imagem de Maria na capa e o título: "Mary, The Most Powerful Woman In The World".

3 Mas, segundo o Evangelho, Maria é quem é porque é a primeira cristã. Acreditou no Filho e no seu Evangelho. Como se lê no Magnificat, o belo hino que São Lucas põe na sua boca: "O Todo-Poderoso fez em mim maravilhas. A sua misericórdia estende-se de geração em geração. Dispersou os soberbos. Derrubou os poderosos de seus tronos e exaltou os humildes. Aos famintos encheu de bens e aos ricos despediu de mãos vazias."

Por decisão pessoal, o autor do texto não escreve segundo o novo Acordo Ortográfico

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