sexta-feira, 7 de abril de 2017

Transhumanismo e pós-humanismo (4)


1 Depois do êxito mundial de Sapiens, com mais de um milhão de exemplares vendidos, Yuval Noah Harari publicou em 2015 Homo Deus, que, depois de reflectir sobre as ameaças da biotecnologia e da inteligência artificial ao humanismo e que nova religião poderia substituí-lo, termina perguntando em que devemos centrar-nos se pensarmos em termos de meses ou de anos, respectivamente. Se adoptarmos uma visão realmente ampla da vida, "todos os outros problemas e questões são eclipsados por três processos interconectados: 1. A ciência converge num dogma universal, que afirma que os organismos são algoritmos e que a vida é processamento de dados. 2. A inteligência desconecta-se da consciência. 3. Algoritmos não conscientes mas inteligentíssimos rapidamente poderiam conhecer-nos melhor do que nós próprios". Estes processos levantam três perguntas-chave: "1. Os organismos são realmente só algoritmos e realmente a vida é só processamento de dados? 2. O que é mais valioso: a inteligência ou a consciência? 3. Que é que acontecerá à sociedade, à política e à vida quotidiana quando algoritmos não conscientes mas muito inteligentes nos conhecerem melhor do que nós próprios?"

2 Realizar-se-á o sonho do salto para máquinas inteligentes e autoconscientes, e a caminho da imortalidade?
Nem Luc Ferry, para quem, embora não se importasse de viver mais tempo, pelo contrário, a imortalidade neste mundo é um "fantasma", nem Jean Staune vêem como é que um computador poderia aceder ao estado de consciência ou sequer de simulá-lo. Também não vejo. Aliás, como é possível a emoção, sem uma base biológica? E a consciência, a consciência de si, continua um "milagre": essa luz que, auto-iluminada, ilumina tudo o que não é ela, e que faz de cada um uma intimidade única, de tal modo que eu não sei o que é ser outro. Essa consciência de si, no seu carácter intransferível, é avassaladora. Sobretudo: tenho um cérebro, mas sou eu. A ciência não explica.
E como produzir uma máquina verdadeiramente livre, se precisamente "programar" se contrapõe a ser livre, dispor de si em liberdade? A tese de máquinas conscientes parte do pressuposto da identidade entre cérebro e consciência. Ora, embora a consciência tenha emergido a partir das propriedades ontológicas da matéria, realmente a consciência não parece redutível ao cérebro. De facto, temos cérebros, mas somos eus. Como se passa da objectividade para a subjectividade, de processos da ordem da terceira pessoa para a vivência de si na primeira pessoa?

3 No entanto, o jesuíta Javier Monserrat, neurólogo, filósofo e teólogo, levanta algumas questões pertinentes. Segundo ele, este é o paradoxo: por um lado, "o modo de ser real próprio do homem não pode reduzir-se ao modo de ser real dos animais, e, muito menos, do mundo físico da pura matéria", mas, por outro, "não é menos verdade que a ciência nos impõe hoje aceitar que formamos parte de um processo evolutivo unitário que não tem alternativa".
A natureza humana, aberta, terá mudanças evolutivas, mas a pergunta é: "Produzir-se-á uma mudança qualitativa na natureza humana?" É evidente que as novas tecnologias abrem perspectivas impressionantes para promover o futuro da evolução e da natureza humana. Não se pode duvidar de que a espécie humana poderá dispor de cyborgs ao seu serviço e de que "a sua actividade intelectual e puramente orgânico-biológica poderá dispor do apoio de imensas redes externas de computação ao serviço do conhecimento, da saúde e controlo do próprio corpo e do domínio geral sobre a natureza". Instrumentos de uma capacidade superior àquela que até há pouco se poderia sequer imaginar. O mundo dos cyborgs e das redes de computação externa "será uma dimensão de realidade diferente, da qual o homem poderá fazer um uso instrumental, mas que, para responder à pergunta formulada acima, não será ontologicamente idêntica à ontologia humana e que, por conseguinte, nunca poderá ser integrada numa unidade ontológica nova que pudesse dar lugar a uma natureza humana qualitativamente diferente da que conhecemos até agora". Porquê? Há irredutibilidade entre a ontologia do mundo da computação e a ontologia do mundo animal-humano. A razão é clara: "tanto as máquinas humanóides ou cyborgs como as redes de computação externa, por exemplo, como as concebe Raymond Kurzweil, são sistemas seriais ou conexionistas (PDP) que funcionam de uma forma mecânica e cega, sem que haja a mínima semelhança ontológica com os sistemas biológicos associados evolutivamente à sensibilidade-percepção-consciência, à existência de sujeitos psíquicos conscientes e à mente animal e humana."
As coisas poderiam mudar?, pergunta. Responde afirmativamente. E a razão, hoje cientificamente estabelecida, é que "o mundo da sensibilidade-consciência emergiu das propriedades ontológicas da matéria. Portanto, se fôssemos capazes de construir uma engenharia apropriada para aproveitar a capacidade ontológica da matéria para produzir "sensibilidade", então poderíamos ir construindo máquinas que não fossem mecânicas e cegas, mas que funcionassem de um modo mais próximo do mundo biológico. No entanto, hoje as coisas não vão por aí (estamos a falar quase de ciência-ficção) e só se faz uma engenharia computacional mecânica e cega, como vemos em Kurzweil, que, além disso, se distancia explicitamente da incipiente neurologia quântica que, em princípio, poderia ser a única via para construir máquinas mais próximas da vida real".

4 Até onde iremos nas nossas capacidades, com as novas tecnologias? E o que é que verdadeiramente queremos? Como escreve Luc Ferry, "nunca a palavra regulação (ético-política) designou uma tarefa mais decisiva do que na situação inédita, e sem dúvida irreversível, que é agora a nossa".

Anselmo Borges 


Por decisão pessoal, o autor do texto não escreve segundo o novo Acordo Ortográfico




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