domingo, 16 de abril de 2017

Metamorfoses pascais do desejo (1)


«Um Deus que não é a alegria da vida não é Deus. É um ídolo criado para justificar a dominação económica, política e religiosa.»


1. Os textos do Novo Testamento (NT) não foram encomendados ou ditados, corrigidos por Jesus Cristo. Surgiram em comunidades cristãs, depois da sua morte, para mostrar que o processo que O vitimou não podia ser arquivado. A coligação das autoridades romanas e judaicas, ao contrário das aparências, sob a capa de um julgamento, de facto, tinha decretado o assassinato de um inocente em nome de Deus e do Império [1].
Os autores do NT, ao reabrirem o processo, não pretendiam rever uma questão jurídica do passado, mas testemunhar que estavam completamente enganados os que julgavam que o Nazareno e as suas propostas tinham uma pedra em cima, para sempre. Estava em curso, até ao fim dos tempos, a passagem agitada para uma nova era.
Era difícil o caminho da realização da esperança. Mesmo depois da ressurreição, até os discípulos mais chegados, continuavam a alimentar concepções messiânicas que Jesus tinha expressamente rejeitado durante a sua vida terrestre. O autor dos Actos dos Apóstolos começa a sua obra narrando esse distorcido desejo pré-pascal: “Estando reunidos, perguntaram-lhe: ‘Senhor, é agora que vais restaurar a realeza em Israel?’”[2] 
Jesus não lhes reconheceu competência sobre essa questão. Precisavam de outra lucidez e de outra energia para enfrentar os novos tempos: “Recebereis uma força quando o Espírito Santo tiver chegado sobre vós e sereis minhas testemunhas em Jerusalém e em toda a Judeia e Samaria, até ao fim da terra.” [3] Os Actos dos Apóstolos desenharam um cenário espantoso desse acontecimento: “De repente, veio do céu um ruído semelhante a um vendaval, ficaram cheios do Espírito Santo, soltou-se-lhes a palavra e cada um os ouvia na sua língua materna.”

Ao espanto de uns respondia a chacota de outros: estão com os copos. Coube a Pedro explicar o que estava a acontecer e rematou o seu entusiasmado discurso com esta solene proclamação: “Que toda a casa de Israel tenha a certeza de que esse Jesus que vós crucificastes Deus o fez Senhor e Cristo.” [4]
Ao ouvirem isto, diz o texto, trespassou-se-lhes o coração e disseram a Pedro e aos demais Apóstolos: “Que devemos fazer?” Precisavam de uma viragem completa mediante a conversão, banho de Espírito Santo em nome de Jesus Cristo e partida para a missão universal.
O profeta Joel já tinha escrito o poema para celebrar o que estava a acontecer: “Derramarei o meu Espírito sobre toda a carne. Os vossos filhos e as vossas filhas hão-de profetizar, os vossos jovens terão visões e os vossos velhos, com sonhos, sonharão.” [5]

2. A pergunta subjacente a tudo o que foi dito é esta: quem tinha razão? Jesus ou aqueles que o mataram?
Procurar, hoje, uma resposta a essa pergunta não é para resolver um problema de há dois mil anos. Com o rodar do tempo e usando as mesmas palavras podemos estar a falar de realidades opostas ou que perderam o impacto que já tiveram.
Se Jesus foi morto em nome de Deus, da religião e dos interesses do Império, é óbvio que importa redescobrir qual era a concepção que Ele tinha de Deus, da religião e dos interesses do Império. Não é uma operação fácil.
Os escritos do NT estão configurados por formulações teológicas, antropológicas e cristológicas muito diferentes. Nasceram de percursos de comunidades cristãs em contextos diversos. Temos de resistir à tentação de sistematizar ou enquadrar, numa visão unificadora, essas concepções. No entanto, na sua diversidade, nasceram da urgência de confrontar a vida pessoal e comunitária com as narrativas de experiências com Jesus Cristo, na convicção de que Ele está vivo e o seu Espírito, se for acolhido com fidelidade, suscitará atitudes criativas perante novas situações. 
Passada a primeira febre apocalíptica paulina — a de organizar e preparar os cristãos para o fim do mundo [6] —, os textos destinam-se a preparar os discípulos, para enfrentar, com fidelidade, os novos desafios: acreditar e andar sem ver. Por isso, nunca poderão evitar a pergunta: qual foi o percurso do Mestre?

3. Jesus levou muito tempo a encontrar o seu próprio caminho: teve de romper com o amigo mais admirado, João Baptista; com as concepções e expectativas messiânicas dominantes, expressas nas tentações que o assaltaram e nunca o largaram até ao último momento.
Não se dá o devido relevo à luta que teve de travar para romper com o caminho de João Baptista e sobretudo com as tentações messiânicas dominantes. Os quatro Evangelhos não são textos escolares, didácticos, professorais. São textos polémicos, precisamente, acerca da incompatibilidade entre as concepções e atitudes de Jesus, as dos discípulos e as dos adversários. Foram estas incompatibilidades que O levaram à cruz. Naquela sociedade sacral, a grande incompatibilidade nascia no seio da religião, porque era ela que comandava tudo. Jesus não era um ateu, um agnóstico ou um sem religião. Aquilo que o enervava não era só a hipocrisia, que continuamente denunciou, mas verificar que o recurso às observâncias religiosas, ao nome de Deus e à sua vontade servia para classificar uns como santos e salvos e outros como pecadores e perdidos. Era uma luta teológica por causa de uma questão antropológica. Um Deus que é o consolo dos piedosos, dos ricos, dos poderosos e uma fonte de humilhação dos classificados como pecadores, por aqueles que estabeleciam as leis da santidade e as do castigo, era uma vergonha.
O caso permanente era a sua polémica com o Sábado, uma instituição civilizacional fantástica — o ser humano não é só para trabalhar —, mas que foi transformada no dia da opressão, em nome de Deus. A insistência de Jesus em violar o Sábado parecia uma actuação provocatória: escolhia precisamente esse dia para fazer o que estava proibido. Tinha uma razão altamente teológica, coincidente com uma razão profundamente humana: o dia consagrado a Deus tinha de coincidir com o dia da libertação das vítimas da doença interpretada como possessão diabólica, fruto do pecado. Um Deus que não é a alegria da vida não é Deus. É um ídolo criado para justificar a dominação económica, política e religiosa, como veremos.

Frei Bento  Domingues

PÚBLICO de hoje

[1] Act 4, 27-28.
[2] Act 1, 6
[3] Act 1, 8
[4] Act 2, 36
[5] Act 2, 17-19
[6] 1Tes.4, 9-18

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