sexta-feira, 3 de março de 2017

Francisco: um quase-testamento 1

Crónica de Anselmo Borges 
no DN



«É o dinheiro que governa o mundo. 
Mesmo em muitas igrejas!» 

1 - Professor em Harvard, Harvey Cox, pastor baptista, é um dos mais conceituados especialistas na análise do fenómeno religioso no mundo moderno e contemporâneo. Concedeu recentemente uma entrevista a José Manuel Vidal.
Qual é o futuro da fé? A fé tem futuro? Resposta: "Sim, porque julgo que os seres humanos são criaturas que por natureza procuram a fé, o significado, os valores. Isso é o que procuramos - encontramo-lo de diferentes modos, com expressões diversas -, mas a busca da fé não desaparecerá enquanto continuarmos a ser seres humanos. Haverá diferentes expressões da fé. Por isso, como cristãos, temos de preparar-nos para esta diversificação de diferentes caminhos. No entanto, a fé, essa, sem dúvida, continuará. Creio que estamos perante um período de crescimento do cristianismo, não tanto no Ocidente - Europa, Estados Unidos -, mas no Sul global. Aí é onde está o futuro da minha fé, o cristianismo. Julgo que aí é onde o seu futuro será mais forte".
A entrevista girou sobretudo à volta do Papa Francisco, sobre quem Harvey Cox falou de modo entusiasta e elogioso. "Sim, sou um grande admirador de Francisco. Penso que até agora fez coisas maravilhosas. Impressionou-me muito da vez em que estive com ele. É um dom para a Igreja Católica, para todas as igrejas..., um dom para todo o mundo. É uma pessoa extraordinária, e rezo por ele. Sei que tem oposição - uma oposição forte e séria - e julgo que precisa que o apoiemos."
Onde estão os inimigos dele: dentro ou fora da Igreja? "Nos dois lados. Mas os mais perigosos estão dentro, porque ocupam postos de poder. Alguns são bispos, até cardeais, e outros, teólogos... Podem fazer-lhe a vida muito difícil e impossibilitar que faça o que julga que Deus quer. Mas é muito bom no trato com as pessoas: primeiro, de modo suave, e também com mão dura, quando é preciso. Espero que tenha êxito."

Irá ter tempo para terminar a reforma? "Provavelmente não. Pode começá-la e, de modo contundente, pode colocar os alicerces para um futuro desenvolvimento do seu projecto quando cá já não estiver, é uma tarefa demasiado grande para ser terminada num só pontificado. De qualquer modo, penso que pelo menos alguns aspectos da sua reforma não são reversíveis, porque as pessoas viram e saborearam o que esta reforma significou e ela não vai parar só porque o Papa Francisco a não lidera. Julgo que continuará: pode ser que se torne mais difícil, mas não conseguirão detê-la. Porque ele é um exemplo para todos. Um exemplo de abertura, de alento e de não criticar. O que temos nos Estados e em muitas partes do mundo é que muitíssimos jovens que não fazem parte de nenhum movimento religioso, organismo ou Igreja, mas não são ateus, estão a olhar, a procurar, tentando encontrar algo, e penso que o Papa lhes fala com o seu modo de viver e a sua forma de falar. Eu, por exemplo, tenho amigos na minha universidade que se consideram não religiosos, alguns até são agnósticos, mas 100% deles estão favoravelmente inclinados para Francisco. É incrível."
Pergunta: "O Papa pode ser o único líder global que pode fazer frente a Donald Trump?"
"Bom... Como alguém disse muito recentemente: o Papa Francisco é o único adulto que resta, o único com maturidade. Penso que um dos problemas com Trump é que é muito infantil. É impetuoso, destemperado, age a partir da ira e não modera os seus sentimentos. Essa é uma forma perigosa de actuar, e isso é característico das crianças. Há outras coisas. As suas políticas são muito frequentemente más - não todas, mas muitas -, mas preocupa-me a sua falta de temperamento equilibrado. Há uma coisa que o Papa Francisco tem: um sentido maravilhoso de maturidade. Maturidade, equilíbrio e justiça. Estando assim as coisas, julgo que Francisco é um dos poucos muros de contenção - talvez o único - ao que Trump gostaria de fazer."
Com Trump, o mundo vai sofrer. Há esperança?
"Sem dúvida alguma, o mundo vai sofrer com Trump: vão sofrer os pobres, os imigrantes, os refugiados... muitos vão sofrer por causa das suas políticas. É o dinheiro que governa o mundo. Mesmo em muitas igrejas! É a tirania do "deus mercado"..., di-lo o Papa. Governa-nos o mercado. Mas há esperança. Sempre. E a esperança é mais importante agora do que nunca. A esperança não é um dado empírico, é uma virtude teologal que vem do mais profundo. Temos de ter esperança, e creio que a temos: as pessoas nunca se renderão. Dão-me muito alento os meus estudantes, os meus filhos já adultos... eles nunca abandonarão a esperança."

2 - Num testamento, ficam as últimas vontades de alguém. Quais são as do Papa Francisco?
Ele deu, no passado mês de Janeiro, uma longa entrevista ao jornal El País e nela está, no meu entender, o que se pode considerar o seu testamento ou, pelo menos, um quase-testamento.
Referindo-se precisamente a Trump, respondeu que não gosta de se antecipar aos acontecimentos: "Veremos o que faz." Mas foi avisando que o perigo em tempos de crise é buscar um salvador que nos devolva a identidade e nos defenda com muros.
O jornalista perguntou-lhe o que resta, após quatro anos como Papa, daquele padre das ruas em Buenos Aires. E ele: "Que continua sendo das ruas. Porque assim posso sair à rua, cumprimentar as pessoas nas audiências ou quando viajo. Foi espontâneo. A alma das ruas permanece, e vocês vêem." E a cúpula da Igreja está a dormir? "Eu, dentro da Igreja, tenho mais medo dos anestesiados do que dos que estão a dormir. Talvez a doença mais perigosa que um pastor possa ter venha da anestesia, e é o clericalismo: eu aqui e as pessoas aí. Você é o pastor dessas pessoas? Eu digo: se não cuida delas, feche a porta e reforme-se." Continuaremos.

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