Crónica de Maria Donzília Almeida
Estava eu com as mãos na massa, no sentido literal do termo, quando toca a campainha. Não estava a amassar o pão, em concorrência desleal com o diabo que já amassou muito, algum do qual lhe tenha tomado o gosto.
Estava apenas a dar uma ajudinha à massa, antes de a pôr na máquina de fazer pão. Uma volta à massa evita que a farinha aglomere nos cantos redondos da cuba e o pão ficando por cozer. Com os avanços da tecnologia, houve uma redução drástica no trabalho das donas de casa, que agradecem, restando-lhes assim mais tempo para a família.
Há uma diversidade de eletrodomésticos que facilitam, agilizam e economizam tempo e dinheiro, revertendo a morosidade e fadiga das tarefas domésticas em tempo de exercício e convívio familiar.
Tiro as mãos da massa e vou à porta ver quem chamou. Para meu grande espanto, deparo com algo tão insólito quão inesperado: um jovem, cheio de piercings e tatuagens e um corte de cabelo que está na berra – com um rabicho no alto da cabeça. Uma personagem de telenovela foi o modelo e logo ditou a moda. A juventude permeável a estas inovações segue-as logo, numa pura imitação.
Pouco dada a preconceitos e a juízos apriorísticos, confesso que o meu pensamento pecou um pouco, mas assumo-o — mea culpa!
A minha estupefação não se ficou por ali, quando observei que o jovem trazia uma galinha debaixo do braço. O que estará ele aqui a fazer, naquele preparo? Foi o primeiro pensamento que aflorou ao meu espírito.
Indaguei ao que ele vinha e ouvi a resposta: “Ia a passar na rua, aqui à beira e encontrei esta galinha que fora atropelada…Como vi outras dentro da rede, supus que fosse sua, por isso lhe vim bater à porta.”
Havia pouca probabilidade de a galinha me pertencer, de qualquer modo, fomos ambos verificar ao bosque. Estavam lá todas, logo era uma galinha que se teria evadido de um qualquer capoeiro. Sugeri ao jovem que a levasse consigo e a preparasse para comer, o que me pesou na consciência. Às minhas, concedo-lhes a vida, em troca dos deliciosos ovinhos que põem. Não gosto de matar os animais, sou quase vegetariana!
Não tinha frigorífico em casa, nem um bocadinho de quintal, onde pudesse deixá-la à vontade. À saída do bosque não pude deixar de lhe fazer uma pergunta “Você tem bom coração?” atirei expectante. “Tive pena da galinha, que já tinha um ferimento no dorso e podiam vir carros que a matassem.”
“Gosta de animais?” Prossegui o diálogo.
“Sim, eles são nossos amigos, devemos respeitá-los. Alguns são mais nossos amigos que o próprio homem!” Anui num silêncio que mascarou uma resposta mais que afirmativa.
A galinha, a seu pedido, foi deixada à porta do aprisco, outrora dormitório das cabrinhas anãs, hoje das galinhas. Não sei como estas reagiram à chegada desta nova inquilina, mas presumo que a receção não tenha sido calorosa. Já tinha encomendado Betadine para lhe fazer o curativo no dia seguinte.
Quando, de manhã, fui abrir o aprisco deparei com um espetáculo desolador: a galinha ferida estava morta, à entrada, do lado de fora.
Esconjurei as galinhas que, com toda a certeza, escorraçaram a pobre coitada, e só não lhes acenei com a faca, porque não tenho esses instintos.
Restou-me a triste consolação de ter permitido à pobre criatura, uma morte digna, no meio das suas congéneres.
E aprendi uma grande lição: nem tudo o que parece é, nem tudo o que é parece.
22.03.2017