sábado, 31 de dezembro de 2016

O segredo de Francisco: tempo para o ócio silente

Crónica de Anselmo Borges 
no Diário de Notícias



Deixo aqui os meus melhores votos para o novo ano, desejando a todos saúde, paz, realizações felicitantes e também o que me parece de suprema urgência: ao longo do ano todo, algum tempo para o ócio silente.

Uma das características da nossa época, que causa estragos sem fim, é a agitação geral e frenética, consumista, que tudo devora. O nosso tempo não tem lugar para o ócio, aquele ócio de que fala a scholê grega. Vivemos, como dizia o grande bispo do Porto D. António Ferreira Gomes, na "agitação paralisante e na paralisia agitante", isto é, não vivemos verdadeiramente. Porque o autenticamente humano está recalcado. Vivemos na dispersão agitada e agitante, sem encontro autêntico connosco e, portanto, também com os outros e com o essencial da vida. A net contribui frequentemente para fazer aumentar esta agitação alienada e alienante, e até estupidificante, pois todos podem agora, escondidos no anonimato cobarde, pronunciar-se sobre tudo, mesmo desconhecendo completamente as temáticas e as suas complexidades, ou, mediante manipulações algorítmicas a favor de interesses, enganar. Na presente agitação e atomização temporal, submersos pelo tsunami informativo e pela competição tóxica, é muito difícil erguer uma identidade pessoal integrada, íntegra e consistente. Também por isso, não vejo as pessoas mais felizes, pelo contrário, aumentam as depressões. Realmente, para se alcançar a felicidade, é essencial o apaziguamento e a serenidade interiores, o estar de bem consigo. Hoje são conhecidos, através da imagiologia cerebral, os efeitos benéficos da meditação no cérebro, concretamente sobre o stress e a ansiedade. Significativamente, o verbo mederi, com o radical "med-", que significa "pensar, medir, julgar, tratar um doente, curar", está na base etimológica de três palavras: meditação, moderação e medicina. O reconhecer-se, a presença de si a si mesmo não significam de modo nenhum narcisismo, pois, quando se pára, se pensa e reflecte, lá no mais profundo, encontramos o mistério da Fonte donde tudo provém e a que estamos religados, em interconexão com todos e com tudo.

Então, de que é que precisamos? De parar, para que tenham lugar e tempo a contemplação, a meditação, a oração. E isso só se cumpre com o ócio. A palavra ócio (em latim, otium, que significa tempo de repouso, vagar, ócio, retiro, solidão, paz) é solidária com a palavra grega scholê, donde procede a nossa "escola" e significa ócio, o ócio para a actividade dos homens livres, a liberdade para pensar e governar a pólis. O ócio da scholê nada tem a ver com a preguiça, que é um vício e que devemos todos condenar, pois preguiçoso é aquele que não quer trabalhar, que vive na indolência, à custa dos outros, encostado ao Estado, sem cumprir diligentemente os seus deveres. O ócio, esse tem a ver com concentrar-se, contemplar, ser si mesmo, viver. Para lá da agitação devoradora e da banalidade rasante, parar, ser e estar e viver no melhor, no Divino, na Beleza, na Vida. Fazer silêncio, precisamente para ouvir o silêncio e o que só no silêncio se ouve: a voz da consciência e do sentido. Eu vejo o ócio essencialmente como um parar. Para se poder viver na Vida, no essencial. Tem a ver com o saborear o instante do vivido, o milagre do ser e de se ser, do viver. Quando é que se vive? Agora. Viver é fim em si mesmo, na alegria do viver na plena consciência. A vida não pode esgotar-se, como acontece tão frequentemente, num meio para outra coisa, para atingir um fim ou fins.

Entendo o ócio naquele sentido profundo de "tempo" para meditar, pensar, recentrar-se, ir ao essencial, viver na profundidade. Sem o ócio no sentido da scholê grega, portanto, da liberdade para poder pensar, não há pensamento autêntico. Hoje, o que é que temos? Exactamente o contrário do ócio, pois tudo está transformado em negócio (neg/ócio), predominando os interesses e esquecendo os valores. No contexto e na rede dos negócios, calcula-se, vale o mensurável, está-se no uso e domínio da razão calculadora, da razão instrumental, de que fala a Escola Crítica de Frankfurt, não se pensa propriamente. Já não há pensamento, porque os negócios, que ocupam todo o espaço e tempo, são da ordem do cálculo. Foi neste sentido que o filósofo M. Heidegger preveniu, dizendo que a técnica não pensa. Não pensa, porque é da ordem do mensurável e do cálculo. Esta é também uma das razões fundamentais para explicar a situação actual da política e dos políticos, que tanto têm descido na consideração pública: a cumplicidade entre a política e os negócios. Tudo se tornou negócio e os políticos não encontram tempo-ócio para ler, para meditar, para reflectir sobre o essencial. O que lhes interessa fundamentalmente, nesta sociedade-espectáculo, é estar "armados" com respostas rápidas e imediatas e em consonância com os seus interesses e com o que consideram serem as expectativas dos seus eleitores, quando lhes aparecer pela frente uma qualquer televisão ou microfone. No meu entender, e considero isto essencial, eles têm de encontrar tempo, fazer pausa, para reflectir, meditar, ler o fundamental. Se quiserem de facto passar a estadistas e estar à altura do momento verdadeiramente histórico, tão complexo, ameaçador e dramático, que vivemos.

O Papa Francisco, que, neste nosso mundo global, talvez seja o líder político-moral mais amado e é um dos mais influentes, levanta-se muito cedo todas as manhãs. Para quê? Para, no ócio silente e criador, antes de todas as suas tarefas, poder rezar, contemplar, encontrar-se consigo no mais profundo de si, lá onde se encontra com o mistério da Presença enquanto Fonte, Deus. Este é o seu segredo: "Entrar no mistério significa capacidade de assombro, de contemplação; capacidade de escutar o silêncio e sentir e ouvir o sussurro desse fio de silêncio sonoro no qual Deus nos fala."

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