Ser órfão!
Não ter na vida aquilo que todos têm!
É como a ave sem ninho...
É qual semente perdida que,
ao voltar do seu eirado,
o lavrador descuidado
deixou tombar no caminho.
Guerra Junqueiro
Estava de saída, num restaurante local, onde paro de vez em quando para satisfazer as necessidades do corpo e ao mesmo tempo apreciar a gastronomia das Gafanhas.
Como é comum, no meu percurso docente, eu ter lecionado a meia Gafanha, inteirava-me da situação escolar do filho dos donos, meu ex-aluno. Qualquer professor gosta de saber a evolução dos seus alunos, quando são lançados no vasto mundo.
Aquele, um native speaker, ia bem no prosseguimento de estudos. Fora uma criança dócil, para quem o cumprimento de regras não constituiu qualquer dificuldade.
Quando me dirigia para a porta, fui intercetada de forma desabrida, por um adolescente, que me pespegou dois beijos na cara e continuou a cirandar ali, à minha volta.
Estava naquele momento a frequentar um curso com a componente prática, numa empresa local – informou ele, com despacho.
A imagem que guardo do T. é a de uma criança que a vida atirou para o mundo, sem um berço para o acolher. Andara ao sabor da maré, que nem sempre fora a seu favor. Denotava um abandono profundo no que toca aos laços afetivos que lhe haveriam de estruturar a personalidade. Essa carência fez dele uma criança instável, irrequieta e com poucas perspetivas de futuro. Causava dó! Qualquer migalha de afeto, que lhe dessem, era para ele sustento. Migalhas é pão…diz o refrão popular.
Ali, estava acompanhado de um tio, este em fato de trabalho, pouco mais velho que rondaria os 30 anos. Com a postura de um verdadeiro adulto, assumia o papel de Encarregado de Educação, ou de tutor do menor. Não o reconheci, de imediato, pois as marcas da adultez lhe escondiam os traços de menino meigo e responsável que o caracterizavam, quando frequentara a escola. Interpelou-me, ansioso, se eu não me recordava dele, pois tinha sido sua professora. Era um aluno que sabia merecer um cantinho, na memória da teacher.
Recuei alguns anos, cerca de 20, aquando da abertura da nossa escola e visualizei o Hugo.
— Continuas caladinho, bem comportado, como eras nas aulas?
— Sim, continuo na mesma. Respondeu com a maturidade de gente crescida.
Aí, fiz a retrospetiva e veio à tona, aquele aluno que tinha um comportamento exemplar e que um dia, na aula da manhã, denunciava alguma agitação que não fazia parte da sua postura habitual. Acabou por confessar, quando questionado, que estava feliz, pois trazia uns ténis novos que a mãe lhe havia comprado.
Esta cena fez-me refletir em situações de alunos que nos chegam à escola sem qualquer suporte familiar: sem acompanhamento dos pais, sem cuidados de higiene, sem material escolar. Órfãos no mais profundo sentido da palavra. Atirados para o mundo cruel que os acolhe e os estigmatiza. Estas crianças revelam muita dificuldade em se integrar numa instituição de ensino, com a sua hierarquia e regulamentos a cumprir.
Perante episódios como este, invade-me um sentimento de compaixão e simultaneamente de impotência em relação a possíveis respostas que seriam desejáveis.
Este aluno, que me passou pela sala de aula, estava agora entregue à tutoria de um tio, apenas um pouco mais velho que ele.
Fico com este pensamento amargo: se a vida estraga com mimos e coisas supérfluas algumas crianças, para outras é verdadeiramente madrasta!
E há tantos T…por aí, camuflados em jovens marginais e até delinquentes!