Crónica de Anselmo Borges
1.Na religião, como tentei tornar claro no Sábado passado, o decisivo é a experiência religiosa, mística, do encontro pessoal com Deus, com todas as consequências de comprometimento com o amor ao próximo, também na política. Mas, num mundo pluralista, em ordem à convivência e à paz, há condições essenciais, nomeadamente o Estado aconfessional. De facto, sem a separação da religião e da política e sem um Estado laico, não se vê como é possível garantir a tolerância e a liberdade religiosa de todos. Evidentemente, a laicidade nada tem a ver com o laicismo pelo qual, desgraçadamente, muitos sectores, sobretudo da esquerda política e cultural, se batem.
2 Quando a laicidade não foi garantida, imensos atropelos foram cometidos no âmbito do mundo cristão, como mostrei no Sábado. De qualquer forma, o fundador, Jesus, tem aquelas palavras decisivas: "Dai a César o que é de César e a Deus o que é de Deus". O cristianismo foi durante 250 anos uma religião pacífica e não pretendia conquistar o poder político. Aliás, seguindo o exemplo de Jesus que, chegado a Jerusalém, não exerceu violência, pelo contrário, mandou que Pedro metesse a espada na bainha, e foi crucificado.
3 Não tenho dúvidas: milhões e milhões de muçulmanos fizeram e fazem uma experiência religiosa autêntica com o Deus Clemente e Compassivo, como diz o Alcorão, e a maior parte são pessoas que querem a paz.
Mas, depois, como disse, há um problema essencial, que tem a ver com a religião enquanto instituição. Aí, é imprescindível uma leitura histórico-crítica dos textos sagrados, concretamente do Alcorão, que, como sabe qualquer investigador sério, sendo constituído por várias camadas históricas na sua redacção, não permite uma leitura literal. Por outro lado e repetindo, não há possibilidade de igualdade e liberdade religiosa, sem a laicidade, a separação da religião e da política.
Não se pode escamotear a história. Como escreveu Giulio Albanese, no livro O islão explicado a quem tem medo dos muçulmanos, "É claro que certo tipo de comunicação esquece que o islão, através das suas conquistas militares, foi inclusivamente mais colonialista do que o Ocidente. Embora historicamente o islão tenha conhecido etapas de maior tolerância do que a demonstrada pelas sociedades cristãs da altura (por exemplo, na época medieval), de facto na maior parte das sociedades islâmicas está vigente ainda a lei de apostasia pela qual um muçulmano que abandona o islão é susceptível de pena de morte. E é curioso que esta vexata quaestio, de capital importância para a liberdade de consciência e de expressão, nunca seja posta em discussão nos diferentes debates inter-religiosos e mediáticos nos círculos pan-árabes".
Ao contrário de Jesus, Maomé não foi só um profeta: foi ao mesmo tempo um Chefe de Estado e um guerreiro que combateu em muitas batalhas e derramou sangue. E só quem nunca leu o Alcorão de modo crítico é que pode dizer que o islão é só uma religião de paz.
Assim, como mostra o prestigiado académico Shadi Hamid, ele próprio muçulmano, num livro importante acabado de publicar, Islamic Exceptionalism, é fundamental perceber que, precisamente porque, historicamente, nasceu com um profeta, Maomé, a formar e a governar um Estado, o islão constitui de facto uma "excepção" na história das religiões: ele é diferente, por exemplo, do cristianismo no "modo como se relaciona com a política". É preciso reconhecer que centenas de milhões de muçulmanos à volta do mundo "querem que o islão desempenhe um papel importante na vida pública". Pode-se gostar ou não, mas, se realmente o islão vai desempenhar nas próximas décadas um papel central na política, também no Ocidente, "então o objectivo não deveria ser empurrá-lo para fora ou excluir as pessoas, mas encontrar maneiras de adaptá-lo num processo legal, pacífico e democrático". Tarefa urgente e ingente, sobretudo num Ocidente que não é só laico, mas laicista e, para lá de secularizado, secularista, materialista.
4 Com este pano de fundo e no contexto da morte por degola do Padre Jacques Hamel, que o Papa Francisco considera mártir e cujo processo de beatificação aceitou acelerar, Ross Douthat, escreveu recentemente no The New York Times sobre o futuro da religião na Europa: A Igreja em que cresceram tanto o Papa Francisco como o padre Hamel tem a perspectiva do Concílio Vaticano II e "supõe que a modernidade liberal representa uma mudança permanente, uma espécie de maturação na qual também a religião deve amadurecer. Mas a Igreja católica madura, pelo menos no Ocidente, é literalmente uma Igreja em agonia. Como fez notar o filósofo francês Pierre Manent, o cenário do assassinato de Hamel ilustra bem a condição da fé na Europa ocidental: "uma igreja quase vazia, dois fiéis, três freiras, um sacerdote ancião". É provável que o islão de muitos dos imigrantes seja a força religiosa mais poderosa na Europa na próxima geração, trazendo consigo um "excepcionalismo islâmico" (Shadi Hamid) que bem poderia não encaixar em nada no actual experimento laico e liberal".