Reflexão de Georgino Rocha
Valorizar as relações familiares |
Jesus continua o seu itinerário para Jerusalém. Avança com uma liberdade impressionante. Nada nem ninguém faz parar a sua determinação de chegar. Em cidades e aldeias. Sendo acolhido ou rejeitado. Compreendido pelos discípulos ou “censurado”. A iniciativa é incondicionalmente sua.
O texto de Lucas, hoje narrado de forma tão bela e expressiva, transmite e visualiza uma nova faceta da mensagem de Jesus. Trata-se do encontro em casa de Marta e de Maria descrito com pormenores significativos e com sabor delicioso. Nele, condensa, de modo emblemático, as etapas principais da iniciação cristã: Acolher, dialogar, servir. Sem encontro pessoal com Jesus Cristo, sem escuta diligente da sua palavra e oração de comunhão de sentimentos, sem cooperação responsável por meio de obras eficazes no seu projecto de salvação, não há discípulo fiel, cristão apto a dar razões da esperança que o anima, membro consciente da Igreja nem cidadão missionário empenhado na humanização da sociedade.
O relato de Lucas faz-nos ver os passos a dar no proceder dos protagonistas. Jesus entra numa povoação e dirige-se a casa de uma família. Uma mulher chamada Marta vai ao seu encontro e recebe-O. Jesus assume uma atitude singular: entra, “acomoda-se” e começa a conversar com Maria, a irmã de Marta, que o escuta atentamente, alheando-se de tudo. Só desperta quando surge o queixume inesperado. “Senhor, não te importas que minha irmã me deixe sozinha a servir? Diz-lhe que venha ajudar-me”.
A queixa de Marta soa a desabafo/censura pelo abandono da irmã nas tarefas urgentes de preparação da refeição para o hóspede recém-chegado. Parece sensata e oportuna. Sente-se sozinha, cansada, afadigada. Quer as coisas bem feitas e a tempo, sinal de distinção para a sua visita. E vê que se aproximam as horas de comer.
Quem não tende a dar razão a Marta?! …Só que a queixa comporta um risco iminente: quebrar as regras da cortesia e hospitalidade, deixando Jesus sozinho. Dir-se-ia que as coisas valem mais que a pessoa. Ou que o cuidado dos bens vale mais que o seu senhor. Seria como a mãe de família que para ter tudo pronto gasta o tempo todo a preparar as coisas da família e fica sem tempo para a família, a conversa e a intimidade, a alegria e a festa.
Felizmente, nem sempre é assim. O Papa Francisco em «A Alegria do Amor» afirma que “ devemos dar graças por a maioria das pessoas valorizar as relações familiares que querem permanecer no tempo e garantem o respeito pelo outro” (nº 38). E que “a força da família «reside essencialmente na sua capacidade de amar e ensinar a amar. Por muito ferida que possa estar uma família, ela pode sempre crescer a partir do amor» nº 53.
Marta não se dirige à irmã, mas a Jesus com a designação de Senhor. Manifesta uma nova dimensão do seu reconhecimento. O hóspede é senhor, pode ter uma palavra decisiva e dirimir o contencioso. E de facto assim é. E anuncia que na vida só uma coisa é necessária: saber escutar a sua Palavra, contemplar o seu rosto, sentar-se na sua presença, acolher no coração o seu amor de misericórdia, celebrar em festa a sua alegria, viver com diligência a sua paixão de servir sem condições, sobretudo os mais “inutilizados” pelo pecado do sistema imperante. A partir deste centro vital, tudo tem sentido e valor. A ilustração mais visual desta centralidade na actualidade desportiva surge no exemplo do treinador da equipa portuguesa, Fernando Santos.
Lucas deixa o texto em aberto. Certamente que Marta e Maria assumiram a mensagem e que Ele prosseguiu viagem. Está em aberto como que a solicitar a nossa adesão, a querer envolver-nos constantemente. Não deixemos que “parta” da nossa casa/coração sem o ouvirmos profundamente e descobrirmos a sua nova forma de presença na palavra e na eucaristia, nos acontecimentos da vida, nas horas de tristeza e de alegria.
A sua nova forma de presença não é apenas convite a que nos encontremos com Ele, a sermos seus hóspedes; mas a que nos convertamos em discípulos enviados a acolher, a escutar, a servir. Como lembra o Apocalipse o Senhor está à porta e bate. Entra, se livremente a abrirmos ( a porta do coração só se abre por dentro), senta-se à mesa e janta connosco. ( Ap. 2, 20). A voz de Cristo tem inúmeros timbres: tantos como os das pessoas e chegam-nos em palavras sonoras e em silêncios abafados, em gemidos inenarráveis. Em gestos simples como o da criança com camisola portuguesa que vai consolar um adepto francês no final do jogo do campeonato europeu.
Escuta a sua voz. Recebe Jesus em tua casa. Dá à tua vida o sentido de missão. Decide-te!