Reflexão de Georgino Rocha
Jesus é um homem livre. Toma decisões conscientes, ainda que arriscadas. Assume as consequências das opções feitas. Tem a noção clara do tempo. Está aberto à surpresa, embora procure gerir as circunstâncias. Avança para a cidade de Jerusalém, para o Templo, o coração da vida religiosa, social, política e económica. O centro do poder que geria a ordem estabelecida que tantos privilégios concedia a uns poucos e mantinha a maioria empobrecida, submissa e resignada.
Aproveita a viagem para apresentar ao povo a novidade do projecto de Deus de que era portador e preparar os discípulos para a missão que lhes iria confiar. Pessoas entusiasmadas saem ao seu encontro no caminho, procuram falar-lhe, mostrar-lhe as suas disposições e solicitar favores. Outras nem sequer deixam que se aproxime das suas aldeias, em ostensiva rejeição.
Lucas, o evangelista narrador desta viagem, agrupa cenas, ditos e discursos, compondo um admirável itinerário catequético e realçando que “seguir Jesus é o coração da vida; que não há nada mais importante e decisivo”. A leitura de hoje (Lc 9, 51-62), faz-nos visualizar os traços fundamentais da iniciação cristã polarizados na liberdade: liberdade para decidir – “ se queres”; liberdade para manter a opção feita: - “segue-me e vai anunciar”; liberdade para ser coerente: “ “deixa” as ataduras e vive da esperança; deixa o passado, mesmo valioso e querido, e “agarra o presente” com determinação confiante. Tudo a condizer com o exemplo admirável de Jesus.
Na viagem, Jesus e o seu grupo, tinha de passar pela Samaria, onde ocorre o primeiro episódio que Lucas valoriza pelo seu alto significado evangélico e social: a recusa da violência tanto humana como religiosa. À hostilidade dos habitantes de uma aldeã que os não recebeu, querem Tiago e João – filhos de Zebedeu, o “trovão” conhecido pelas suas reacções enérgicas e espontâneas – invocar forças celestes que vinguem aquela recusa ostensiva, possivelmente baseada em motivos religiosos. Era pública a “desavença” entre as populações por causa também da existência de locais de adoração concorrentes: o de Garizim e o de Jerusalém. Ir a esta cidade era menosprezar o santuário daquele monte.
A repreensão não se faz esperar. A convivência em paz é sinal da novidade do projecto de Deus; a adoração não está mais limitada a certos lugares, mas aberta a todo o espírito “despoluído”, que na verdade ame o bem, a rectidão, a honestidade. Quanta actualidade para o nosso tempo! E quanto trabalho missionário a fazer para purificar e libertar certas mentes paradas no tempo e carregadas de preconceitos!
Depois de recusar a intolerância e o radicalismo, Lucas apresenta-nos a intervenção de três candidatos a seguir Jesus: o entusiasmo do primeiro leva-o a tomar a iniciativa e a dizer “Segui-te-ei para onde quer que fores”. Certamente era sincero na oferta da sua disponibilidade, mas não sabia “no que se metia”. Daí, o esclarecimento de Jesus: seguí-lo é a maior aventura de liberdade em relação aos bens materiais: não possuir nada, não ter onde reclinar a cabeça para descansar. O desfecho do encontro fica em aberto para que esta novidade chegue ao nosso tempo, ao nosso coração e abranja toda a nossa vida.
O segundo aspirante ao seguimento manifesta, como condição prévia, cumprir um dever familiar sagrado: dar sepultura ao pai; por isso pede um adiamento. Mas há decisões que não podem ser proteladas. Agora ou nunca! E Jesus é taxativo. A resposta dada parece ferir o coração humano numa dimensão única. Também aqui a liberdade de opção pelo bem maior – quando o conflito é evidente – é de assumir, apreciar e promover. A radicalidade atinge “as raízes” da própria relação filial, familiar.
O terceiro pretendente quer fazer uma “festa” de despedida. Saudades, laços familiares, memórias, tudo isto e muito mais a reviver em atitude de quem conserva o passado como fonte de energia e referência. Assim, não há lugar para a novidade do projecto de Jesus nem da radicalidade que comporta. Daí o apelo a saber gerir o tempo, a libertar a memória, a cultivar a atitude de olhar o futuro, lavrando como o agricultor, o campo arável para a sementeira. Viver da esperança, ainda que os tempos se apresentem sombrios. Não fazer da vida um museu de antiguidades, mesmo valiosas. Somos futuro a germinar no presente.
Paulo de Tarso, o grande apóstolo da liberdade, lembra aos cristãos da Galácia que “foi para a verdeira liberdade que Cristo nos libertou”…”Vós, irmãos, fostes chamados à liberdade”. Admirável vocação a nossa. E tantos a viveram e a vivem até ao heroísmo. Verdadeiros mártires de sangue da liberdade!
“Além do martírio máximo, o do sangue, adverte o Papa Francisco, também existe o de todos os dias, o «martírio da honestidade» neste mundo que se pode chamar paraíso dos subornos” Muito frequentemente, “falta coragem de jogar na cara o dinheiro sujo. É um mundo onde tantos pais dão de comer aos filhos o pão sujo dos subornos”. E o Papa elogia os cristãos que dão testemunho da sua fé na honestidade da vida, sem reservas.
Honesto consigo mesmo, com os outros, com Deus. Modo admirável de viver a liberdade humana e cristã, de ser discípulo de Jesus Cristo e cidadão responsável. Também a nós, é feito o convite/apelo: Quanto a ti, vem e segue-me!