Crónica de Frei Bento Domingues
no PÚBLICO
1. Nunca vivi em países que invocassem explicitamente a religião para fazer a guerra. No próprio coração da civilização moderna, os totalitarismos do século XX – soviético, fascista, nazi, maoista – com mais de cem milhões de vítimas inocentes, não eram movidos por qualquer religião. A guerra foi muitas vezes encarada como o motor da história. Com o desenvolvimento sempre crescente das ciências e das técnicas poderá tornar-se a sua destruição.
Foi em épocas de muita violência que trabalhei em alguns países de África ou da América Latina. Nenhum deus era invocado para abençoar a crueldade. Em alguns casos, o ateísmo era a regra. Essas guerras não precisavam da bênção de nenhuma divindade. Ainda hoje, o comércio de armas, o tráfico de pessoas e de órgãos, o trabalho escravo, a prostituição, o narcotráfico, a criminalidade organizada nem sempre pertencem a organizações religiosas! A idolatria do dinheiro tem pessoas e serviços bem organizados, a nível local e à escala global, que dispensam o recurso a qualquer outra divindade.
No plano religioso, a pergunta mais importante talvez seja esta: ainda haverá religiões que se alimentam de sacrifícios humanos? Se isto for verdade, o dever da memória não pode substituir a coragem de olhar para o presente.
2. Ao longo dos anos, tenho sido convidado para participar em colóquios de e sobre o diálogo inter-religioso. Sempre que posso, aceito com fervor. Como diz o Papa Francisco, com diálogo verdadeiro, seja em que campo for, todos ganham.
Desde os finais do séc. XIX que existem fóruns permanentes de diálogo religioso, como o Parlamento Mundial de Religiões, fundado em 1893. No âmbito da Igreja católica, foi, sobretudo, a partir do Vaticano II que várias iniciativas confluíram para a criação do actual Conselho Pontifício para o Diálogo Inter-Religioso. Estas actividades tornaram-se frequentes, bem aceites e já marcantes no campo da teologia [1].
Esta normalidade corre sempre o risco de se tornar um ritual que se cumpre e do qual pouco se espera, mas seria injusto desvalorizá-lo. A passagem das hostilidades para o conhecimento e acolhimento mútuos das religiões é um acontecimento que já não nos espanta. Tornou normal o que deveria ter sido sempre a norma.
Deve tornar-se um caminho para a universalização da prática da liberdade religiosa. Antes do Vaticano II, para muitos católicos, era absurdo defender esta liberdade. A tese ortodoxa era simples: só a verdade tem direitos; a depositária da verdade e da sua defesa era a Igreja católica, fora da qual não havia salvação.
A declaração sobre a liberdade religiosa foi discutida, desde o início deste admirável Concílio, mas teve de vencer tantos obstáculos, que só a 7-12-1965 é que foi aprovada. Hoje, é uma bandeira e, sem ela, estaríamos como as religiões que exigem liberdade para si no estrangeiro, mas que a negam onde são elas próprias a impor a lei. É a velha táctica: em nome das vossas leis, exigimos liberdade e auxílios especiais; em nome dos nossos princípios e do nosso regime religioso e político, temos de vos negar essa liberdade.
3. Nenhuma religião tem o direito de impor os seus dogmas, ritos e normas às outras confissões. Seria continuar uma violência execrável, mas se cada uma só pensar em manter-se, defender-se e expandir-se, o chamado diálogo torna-se uma simples capa para o proselitismo das mais aguerridas. Todas têm de procurar descobrir de que reformas precisam.
Não será o dever de todas as religiões, no mundo actual, para além daquilo que as possa individualizar, aplicar a Declaração Universal dos Direitos Humanos? Poderá discutir-se a universalidade desta declaração, no entanto, o primeiro dever é o reconhecimento de que todos têm direito a ter direito. Os cristãos dispõem de um princípio fundamental para avaliar o alcance ético de todas as instituições, religiosas ou não: o Sábado é para o ser humano e não o ser humano para o Sábado. A instituição, tida por mais sagrada, está submetida a algo de ainda mais sagrado: o bem do ser humano.
Do ponto de vista católico, o Vaticano II representa uma grande revolução a respeito de muitos comportamentos e instituições que se desenvolveram dentro da história da Igreja. Aplicou-se um velho princípio: ecclesia semper reformanda. Isto significa que a Igreja não se pode contentar com o que foi realizado nesse concílio. Os desafios, que os sinais dos tempos vão identificando, precisam sempre de novas respostas. Sabemos que, infelizmente, as contra-reformas não desarmam. O Papa Francisco já está a ver que não pode contar com nenhuma auto-estrada. Um processo de reforma nunca pode ser um acto voluntarista. Precisa de criar um clima que possa atrair mesmo aqueles que andam a criar obstáculos e denunciar aqueles fariseus que, como dizia Jesus de Nazaré, não entram nem deixam entrar. O diálogo inter-religioso, para ter sentido, deve ajudar a conversão das religiões a partir daquilo que é essencial em cada uma delas.
[1] Andrés Torres Queiruga, O diálogo das religiões, Paulus, 2005