Reflexão de Georgino Rocha
FAZEI ISTO EM MEMÓRIA DE MIM
Jesus recomenda vivamente aos seus discípulos/apóstolos que façam o que Ele acaba de realizar. A ceia de despedida reveste-se de especial importância. Em breve, deixaria de estar fisicamente presente. A morte arrebatá-lo-ia violentamente. Mas o amor criativo “inventa” a maravilha de ficar. Por isso, toma o pão, parte-o e reparte-o. O mesmo faz com o vinho. Acompanha o gesto com as palavras clarificadoras: É o meu corpo entregue por vós; é o meu sangue derramado por vós e pela humanidade toda. E acrescenta: ”Fazei isto em memória de mim”.
O tesouro confiado por Jesus fica em “mãos de barro”. Já as primeiras comunidades cristãs o testemunham. Os cristãos de Corinto apresentam queixa a Paulo a propósito do que acontecia nas suas assembleias litúrgicas. A primeira parte era dedicada ao pôr em comum os dons pessoais para a refeição de todos e estava a gerar descriminação contínua, pois os ricos faziam grupo à-parte, deixando os empobrecidos abandonados a um canto. Apesar disso, participavam todos na celebração da eucaristia como irmãos, professavam a mesma fé, recitavam as mesmas orações e comungavam o mesmo corpo de Cristo.
Paulo recorre à tradição oral que havia recebido. Relembra a ceia do Senhor, a instituição da Eucaristia. Apresenta coerentemente as exigências decorrentes da participação na entrega de Jesus que dá origem a uma nova humanidade. Interpela a comunidade, convidando-a a examinar-se sobre tal procedimento. E lembra-lhe o risco de comungar indignamente, risco que é a própria condenação. Não pode ser desligada a celebração litúrgica das atitudes marcantes da vida, da solidariedade e partilha dos bens, da convivência social, do cuidado do ambiente e da terra, nossa casa comum.
“Este texto bíblico ( 1ª Cor 11, 17-34), refere o Papa Francisco, é um sério aviso para as famílias que se fecham na própria comodidade e se isolam e, de modo especial, para as famílias que ficam indiferentes aos sofrimentos das famílias pobres e mais necessitadas. Assim, a celebração eucarística torna-see um apelo constante a cada um para que «se examine a si mesmo» (v. 28), a fim de abrir as portas da própria família a uma maior comunhão com os descartados e, depois, receber o sacramento do amor eucarístico que faz de nós um só corpo” AL 186.
A memória de Jesus que a eucaristia celebra não é apenas um facto histórico que se actualiza. É a novidade de Deus em acção que, por meio do Espírito Santo, recria e refaz a humanidade abrindo-lhe os horizontes de Jesus ressuscitado, dando-lhe alento para prosseguir a sua marcha na história e, animada pela esperança de chegar, prosseguir incansavelmente o seu percurso no tempo. Sinal e instrumento desta presença revigorante é a comunidade eclesial que vive em coerência com a maravilha eucarística celebrada. A assembleia dominical, sobretudo, está chamada a constituir o “espelho” polido desta realidade. Paulo não hesita nas palavras que dirige aos cristãos de Corinto. Como é bela e expressiva a celebração em tantas paróquias e santuários! Quanto trabalho há ainda a fazer para que a missa manifeste o que realmente é: ceia do Senhor Jesus oferecida em sacrifício que faz dos seus amigos comensais e comparticipantes na salvação do mundo, de toda a humanidade.
“Fazei isto em minha memória” é missão mobilizadora que deixa marcas indeléveis na história humana: gente simples molda a sua vida pessoal e familiar pelos valores que irradiam das atitudes de Jesus de Nazaré; povos inteiros deixam impregnar as suas culturas pelos traços humanizantes que brotam do Evangelho e do testemunho de tantos cristãos; artistas, poetas e músicos cantam as maravilhas que apreendem dos gestos de Cristo e dão-lhe plasticidade exemplar e cativante; biblistas e teólogos e outros estudiosos reflectem sobre “este mistério da nossa fé” e, provocados pelas situações desumanas gritantes, sobre as correspondentes repercussões na vida eclesial e social, cultural e económica.
A memória de Jesus condensa-se sobretudo na atenção respeitosa e empenhada àqueles que Ele ama com entranhas de misericórdia, aos famintos de dignidade, aos paralisados e amortecidos nas suas aspirações oprimidas, aos descartados e sobrantes, aos manipulados e explorados pelos vendedores de ilusões de sucesso fácil, aos prisioneiros da acomodação ao bem-estar e da indiferença face à dessorte dos demais. “Foi a Mim que o fizestes” ( ou deixastes de o fazer) é leitura sábia e reveladora do alcance destas atitudes para com aqueles que nos rodeiam e se cruzam connosco.
“Fazei isto em memória de Mim” é eucaristia, que desperta em nós as energias mais humanizadas e nos leva a aclamar no santuário da consciência e no espaço familiar, nos templos e nas ruas, o corpo e sangue de Jesus, o Santíssimo Sacramento; nos leva a celebrar em comunidade a Festa do Corpo de Deus, designação tradicional que provém do séc. XIII. Faz tua esta festa. Exulta e dá graças!