domingo, 10 de abril de 2016

O bem e a paz cansam

Crónica de Frei Bento Domingues 
no PÚBLICO

«Fazer aos outros aquilo que gostamos
que os outros nos façam»

1. Segundo o mito bíblico, a Criação [1] é uma vitória sobre o caos. Deus viu tudo o que tinha feito e era muito bom. Um paraíso. Os antigos próximo-orientais faziam um balanço da história da humanidade diametralmente oposto ao dos modernos ocidentais. Contrariamente à ideia do progresso irreversível, os antigos pensavam que o mundo começou perfeito, mas degradou-se progressivamente. Os mitos mesopotâmicos também expressam essa convicção. No mundo grego, esta ideia esquematizou-se no mito das cinco idades do universo [2]. Esses mitos veem no dilúvio a principal fronteira dos primórdios da humanidade. Na versão bíblica, é uma descriação [3].
No entanto, quando parece que se chegou à degradação sem remédio, surge sempre uma esperança. A título de exemplo, cito o Profeta Isaías [4]: “O povo que andava nas trevas viu uma grande luz (…) porque um menino nos nasceu, um filho nos foi dado que anuncia uma paz sem fim”. A IV Bucólica de Virgílio [5] parece copiada desse profeta. No seu poema há também um Menino que vai deixar o mundo livre do medo, governando a terra em paz.

Os cristãos viram nessas figuras míticas do Menino, Jesus de Nazaré, o príncipe da paz, cuja proposta foi rejeitada em público e em tribunal. Acabou na cruz. Este facto foi tão traumatizante para os discípulos que lhes matou a esperança. Todas as narrativas da Ressurreição testemunham que se sentiram completamente perdidos. O Ressuscitado encontrou, nas mulheres que o seguiram e procuravam, as evangelizadoras dos apóstolos, paralisados pelo medo. A era da audácia, dentro e fora do judaísmo, é atribuída à irrupção do Espírito de Cristo.

2. Na sua apologia da Roma cristã, o bracarense Paulo Orósio [6] vê no Império Romano um sistema quase perfeito, no preciso momento em que está a ruir, dilacerado pelas contradições internas e pelas invasões germânicas: “as mesmas leis que se subordinam ao Deus único reinam por toda a parte e por onde quer que eu vá, sem ser conhecido, não receio uma violência repentina, como se fosse um homem sem protecção. Entre romanos, como disse, sou romano; entre cristãos sou cristão; entre homens sou homem; apelo para a república pelas suas leis, para a consciência pela fé, para a natureza pela igualdade. Faço uso temporariamente de toda a terra como se fosse a minha pátria, porque aquela que é a verdadeira pátria e que eu amo não está, de modo algum, na terra [7]”. Sol de pouca dura.
Na Idade Moderna, entramos noutro mundo. Desenvolveu-se a suspeita de que a religião era a fonte de todos os males, de todas as opressões, de todas as guerras. Para que o ser humano fosse livre e criador do seu destino, precisava de se desfazer da ideia de Deus. As ciências e as técnicas acabariam por vencer todas as interrogações de ordem psicológica, metafísica e religiosa.
O liberalismo desconstrutivista transferiu para os seres humanos os atributos divinos.
As ciências, as técnicas e as suas indústrias acabarão por criar o pós-humano. O niilismo de todos os juízos de valor liberta o terreno de preocupações éticas e deixa o pragmatismo puro e duro à solta. Em breve conheceremos a mecânica da biologia humana e desaparecerá o inconsciente individual e colectivo. Seremos transparentes.

3. Ou talvez não. Num mundo, em mudança acelerada, produz-se uma disfunção entre o tecno-económico e o sentido da vida dos cidadãos e das suas identidades. Entre as fontes onde podem ser recuperadas, encontra-se o mundo das religiões. Entre estas, destaca-se o islão e o cristianismo. Mas estas estão a afirmar-se na pior das suas configurações, no fundamentalismo. Por vezes até como justificação religiosa do terrorismo.
As sociedades democráticas ocidentais são e serão, cada vez mais, heterogéneas. A imigração configurou uma paisagem humana e religiosa multicolor. Esta situação exige especiais cuidados para que a integração se faça de tal modo que todos se reconheçam, ao mesmo título, cidadãos do mesmo país, em direitos e deveres.
Qual o papel das religiões numa sociedade democrática? Tentar reduzir o seu papel às sacristias é ilusório. Deixar que, em nome das religiões e do seu peso numérico, dominem o espaço público é minar o papel da cidadania, da política e da religião. Não basta uma cultura do diálogo inter-religioso. A cultura do diálogo deve atingir a vida da cidadania, da política e da religião. Sem distinguir o papel de cada uma destas dimensões, criam-se conflitos desnecessários. Não se resolvem negando às religiões, que respeitam as regras da democracia, a sua voz no espaço público.
O papel dos cristãos consiste em saber que, em cada época, lhes compete praticar e proclamar uma religião universal: fazer aos outros aquilo que gostamos que os outros nos façam. A lei da reciprocidade completada pelo amor aos próprios inimigos [8].

[1] Gn 1-2
[2] Ouro, Prata, Bronze, Sem-Deuses, Ferro
[3] Francolino J. Gonçalves, Bíblia e Natureza, cadernos ISTA, nº 8. 1999, pp 7-40
[4] 9,1-6
[5] Poeta romano, 70-19 a.C.
[6] ca 375 ca 416. Ver https://pt.wikipedia.org/wiki/Paulo_Or%C3%B3sio
[7] Cf. Antóno Borges Coelho, Donde viemos, Caminho, 2010, pp 49
[8] Mt 7, 12; 5, 38-44

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