Crónica de Maria Donzília Almeida
Memento, homo, quia pulvis es
et in pulverem reverteris.
(Lembra-te, ó homem, que és pó
e em pó te tornarás.)
Assoma à memória, neste Dia de Todos os Santos, esta sentença dos tempos remotos em que a liturgia era celebrada em Latim. O tom funesto de presságio aponta para o nosso destino comum, prefigurado nos cemitérios por todo o mundo, onde os mortos são homenageados.
O pó futuro, em que nos havemos de converter, é visível à vista, mas o pó presente, o pó que somos, como poderemos entender essa verdade?
O primeiro dia de novembro é marcado pela ida de milhares de portugueses aos cemitérios, que nesta altura exibem todo o esplendor e fausto da arte floral. É a forma visível que as sociedades modernas adotaram para fazer o culto dos mortos. Esta homenagem é um acontecimento global vivido de diferentes formas um pouco por todo o mundo.
Se no México é uma festa bastante divertida, entre nós... é o festival da flor!
Além do celebração religiosa, estes dias são aguardados pelos vendedores de flores, velas e santos, que veem o seu lucro aumentar, devido à devoção(!?) dos católicos. Até a venda de farturas e doçaria acontece à porta dos cemitérios para aconchegar o estômago, que o coração está triste como a efeméride!
O culto dos mortos é um dos rituais mais antigos da humanidade e encontra-se presente, desde os tempos mais remotos, em todo o mundo. Com efeito, a força desta comunhão entre as pessoas e os seus antepassados, ultrapassa uma mera manifestação mística.
Sendo que 31 de outubro é o dia das bruxas, 1 de novembro dia de todos os santos, 2 de novembro dia de finados, o que tem o Halloween a ver com o dia dos mortos? O nome inglês Halloween vem da expressão “All Hallow’s Eve”, que significa véspera do Dia de Todos os Santos. Entre o pôr-do-sol do dia 31 de outubro e o 1.º de novembro, ocorria a noite sagrada hallow evening. A origem pagã do “dia das bruxas“ tem a ver com a celebração celta chamada Samhain e com os mortos, pois no seu calendário, 31 de outubro era a véspera do Ano Novo, dia em que as almas penadas deambulavam pela terra.
Halloween, a noite da celebração da morte em Portugal, converteu-se numa noite de diversão, com mascarados, que fazem partidas e brincadeiras de cariz infantil. E, contudo, não deixa por isso de ser uma celebração da morte, mesmo que sob a forma de desafio de crianças, que a sociedade de consumo explora em abundância.
Os mortos são homenageados em diversas sociedades de acordo com as crenças de cada povo. A civilização pré-histórica que exaltou o culto dos mortos foi o Egito. Para eles, mesmo após a morte, a vida humana continuava noutro lugar com as mesmas necessidades. Por isso, os egípcios conservavam os cadáveres para terem a sua continuidade no além. Foram exímios na mumificação. Ficaram para a posteridade as Pirâmides de Gizé, estruturas monumentais construídas em pedra. Possuem uma base retangular e quatro faces triangulares que convergem para um vértice. Foram construídas como tumbas reais para os faraós Quéops, Quéfren e Miquerinos pai, filho e neto com os seus sarcófagos riquíssimos.
Algumas culturas de nativos da América veneram os seus antepassados de forma a garantir-lhes um bem-estar na outra vida, alimentando a crença de que os mortos podem influir na vida dos vivos, intercedendo por eles.
No Japão, colocam-se flores dentro do caixão, para além de uma tigela com arroz cozido, água, um vaso com flores, velas e incenso que são colocados sobre uma mesa para que nada falte ao defunto.
Para os budistas, a morte é a única certeza. Segundo esta doutrina, se nos lembrarmos da inevitabilidade da morte, usaremos a nossa preciosa vida de modo harmonioso e conciliador, evitando quezílias, invejas, rancores, vinganças e outros sentimentos mesquinhos que minam a convivência humana.
Na cultura budista e hindu, existe a prática da cremação dos cadáveres e a conservação das cinzas que coabitam com os vivos. Foi essa a constatação que fiz, no extremo oriente, ao visitar uma casa típica tailandesa. Não gera qualquer sentimento de dessacralização, já que os tailandeses consideram a sua casa como um verdadeiro santuário. Aí, a família vive e convive em grande comunhão com a memória dos seus antepassados.
De pés descalços, percorremos as várias dependências da casa e pudemos observar uma linha de pequenos potes em cerâmica, com ornamentações várias, perfilados numa prateleira. Continham as cinzas dos familiares, já noutra dimensão, encimados pelas fotos que tiraram em vida.
Uma alternativa que está a ganhar adeptos, no ocidente e que limitaria o avultado dispêndio que se faz por estes dias.
“Ofereçam-me flores, em vida, quando posso apreciá-las!”— dizia-me uma senhora amiga.
As que, pomposamente, são exibidas no cemitério, são um espetáculo para os visitantes!