Uma reflexão semanal de Georgino Rocha
Georgino Rocha |
«O Papa Francisco vai reflectir
sobre a beleza do matrimónio e da família,
sem esquecer as realidades actuais
em que muitas vivem»
“Estais unidos por Deus em matrimónio”, declara o oficiante
da celebração dirigindo-se aos noivos, agora recém-casados. E o coração exulta
de alegria e confiança, manifestando-se de tantos modos, sendo visível o ar de
festa de todos os participantes. A assembleia de familiares e amigos
testemunha, feliz, o evento religioso de forte cariz social. Testemunha e
solidariza-se, expressando o seu desejo de que “seja para sempre” a aliança
agora selada por Deus, após o mútuo e livre consentimento dos nubentes. E o
rito conclui-se com a afirmação do presidente: “Não separe o homem o que Deus
uniu”.
Este desejo reveste-se da seiva fecunda do sonho original do
Criador do par humano e é avivado sempre que se celebra um casamento cristão.
Jesus Cristo assume esta realidade e, perante as vicissitudes da história que desfiguram
aquele sonho, repõe a sua beleza inconfundível e abre-lhe novos horizontes. A
aliança matrimonial entre homem e mulher passa a constituir um símbolo do amor
de doação definitiva, um sacramento do envolvimento divino na relação mútua dos
esposos, uma bênção reconfortante para as surpresas que o percurso do casal
vier a fazer, um penhor seguro do futuro prometido quando toda a humanidade
estiver no seio de Deus.
Face à atitude de Jesus, os seus adversários fazem-lhe uma
pergunta/armadilha que dá origem a um diálogo esclarecedor: “Pode um homem
repudiar a sua mulher?” “Que vos ordenou Moisés?” “Moisés permitiu que se
passasse um certificado de divórcio para se repudiar a mulher”. “ Foi por causa
da dureza do vosso coração que ele vos deixou essa lei. Mas no princípio da
criação, ‘Deus fê-los homem e mulher. Por isso, o homem deixará pai e mãe para
se unir à sua esposa, e os dois serão uma só carne’. Portanto, não separe o
homem o que Deus uniu”.
Este método de pergunta/resposta era muito usual entre os
Judeus. Faz avançar na busca da solução, a partir do contributo de cada
interveniente e deixa perceber as suas intenções mais profundas. A armadilha é
desfeita com a reposição da verdade: Moisés condescendeu por causa da dureza do
coração humano. Protegeu a mulher repudiada com o certificado de que estava
livre do “seu” dono, podendo dispor da sua vida (era “tramada” a situação da
mulher sem o certificado: não podia voltar a casa do pai porque era posse legal
de outro que a rejeita, não devia relacionar-se com novos pretendentes, nem
beneficiava da protecção de qualquer familiar).
Jesus vai mais longe: situa a mulher no plano de igualdade
do homem. Não os condena, mas denuncia a discriminação patriarcal e a ilicitude
de certas atitudes. Justifica a atenção de Moisés por causa da dureza do
coração humano que cria situações insustentáveis. Apesar deste amor
compreensivo, reafirma o valor da aliança matrimonial em que homem e mulher
estão chamados a ser “uma só carne”, a construir o mesmo projecto de vida, a
crescer na doação mútua, a suavizar a soledade de cada um, a saborear a alegria
da comunhão, a renovar-se na esperança fecunda dos filhos queridos, a sentir a
satisfação da família aberta e solidária.
A dureza do coração tem, hoje, outros nomes e a situação
socio-religiosa alterou-se profundamente. A cultura da sedução e do bem-estar
impõe-se cada vez mais. As sociedades parecem mais uma soma de indivíduos
egocêntricos do que de pessoas relacionadas e altruístas. A fragilidade das
convicções de muitos noivos mostra-se na rapidez com que procuram alternativas
à primeira opção. A longevidade pode acentuar o cansaço da vida em comum e
despertar o gosto por novas aventuras.
Também há casais que reconhecem sinceramente o engano do seu
primeiro casamento e querem refazer a sua vida conjugal. E o divórcio surge
como hipótese plausível facilitado pela lei civil. E seu número cresce,
deixando a descoberto novas situações a reconhecer, a acompanhar e a
evangelizar.
O Papa Francisco com os participantes no próximo Sínodo (4 a
25 de Outubro) vai reflectir sobre a beleza do matrimónio e da família, sem
esquecer as realidades actuais em que muitas vivem. É toda a Igreja que está
envolvida. Não percamos esta hora. Aproveitemos a oportunidade para nos
enraizarmos mais em Cristo e nos sentirmos solidários com quem está “ferido” ou
se divorcia e procura viver o amor conjugal honestamente.