Crónica de Anselmo Borges
"Onde há misericórdia,
aí está o espírito de Jesus.
Onde há rigidez,
estão apenas os seus ministros."
1. "O Papa é católico?" Esta é a pergunta que a revista Newsweek, pensando na sua visita aos Estados Unidos, pôs na capa por cima de uma imagem pouco nítida de Francisco. E, para se perceber melhor a revolução que Francisco está a fazer - "lavou os pés a presos, muçulmanos e mulheres; recusou vestimentas esplendentes; quis como carro um Ford Focus com cinco anos, e uma casa modesta; dirigiu-se aos católicos divorciados e até sugeriu que não lhe competia julgar os gays; criticou o aquecimento global e a desigualdade de rendimentos" -, compara-o com o arcebispo de São Francisco, Salvatore Cordileone, favorável à Missa em latim e que continua num "tradicionalismo sexual que vai contra o tom de tolerância de Francisco", afirmando, por exemplo, que a erosão do casamento tradicional desembocaria num "regresso ao paganismo de outrora", e que o sexo gay e a masturbação, comportamentos sexuais não procriativos, são "males graves, demoníacos". Até parece não pertencerem os dois à mesma Igreja. Mas não se pense que Francisco vai mudar a doutrina do catolicismo: "A mudança é pastoral, não doutrinal."
A 7 de Setembro foi o The Washington Post a sublinhar "a reacção conservadora que se está a gerar dentro do Vaticano". Na frente dessa dissensão, encontra-se o cardeal R. Burke, que prometeu "resistir" às mudanças liberais de Francisco, sublinhando que o poder do Papa "não é absoluto": ele "não tem o poder de mudar a doutrina". Enquanto "os aliados progressistas de Francisco o aclamam como um revolucionário", "a rebelião conservadora está a adquirir múltiplas formas", também em livros e nas redes sociais. O autor do texto, Anthony Faiola, elenca oito das afirmações e atitudes "mais liberais" de Francisco: "Mesmo os ateus podem ir para o Céu"; o carreirismo na Igreja é uma "lepra"; "se alguém é gay e procura o Senhor e tem boa vontade, quem sou eu para julgar?"; "hoje", contra "a globalização da indiferença", "temos de dizer "não" a uma economia da exclusão e da desigualdade. Essa economia mata"; quando Diego Neria Lejarraga, nascido mulher, depois de mudar de sexo, se encontrou com Francisco e lhe perguntou se tinha lugar na Igreja, o Papa respondeu abraçando-o; na encíclica sobre o meio ambiente, colocou a Igreja na frente da obrigação moral por uma "ecologia integral"; no Ano da Misericórdia, alargou aos padres o poder de perdoar às mulheres que abortaram; a um mês do Sínodo, acelerou, simplificou e quer que sejam gratuitos os processos de declaração de nulidade dos casamentos, e pediu ao clero que mantenha "as portas abertas" aos católicos que voltam a casar-se.
Também o The New York Times de 19 de Setembro chamou para a primeira página a figura de Francisco, "um Papa humilde, a desafiar o mundo", "um pastor e não um rei", que "alcançou em pouco tempo uma estatura global única". O seu imperativo de mudança da Igreja e do mundo provocou ansiedade e esperança: "Muitos conservadores projectam nele os seus medos. Muitos liberais assumem que é uma alma gémea. Outros argumentam que Francisco está menos preocupado com a esquerda ou a direita, pois do que se trata é de inverter a diminuição da popu- laridade da Igreja na América Latina e não só." Independentemente do que vá acontecer, "a sua missão espiritual de colocar os pobres no centro da Igreja já lhe permitiu empurrar para o centro do debate mundial questões como as alterações climáticas, as migrações, o repensar da economia capitalista do pós-2008".
2. O Papa é católico? O próprio Francisco, na viagem de Cuba para os Estados Unidos, respondeu a um jornalista, com algum humor cáustico: "Um cardeal amigo contou-me que foi vê-lo uma senhora, muito preocupada, muito católica, um pouco rígida, mas boa pessoa. E perguntou-lhe se era verdade que na Bíblia se falava de um Anticristo. Depois, perguntou-lhe se falava de um Anti-Papa. E, quando ele lhe perguntou a razão destas perguntas, ela respondeu: "Tenho a certeza de que Francisco é um Anti-Papa, porque não usa os sapatos vermelhos." Quanto a ser comunista: tenho a certeza de não ter afirmado senão o que ensina a Doutrina Social da Igreja. Sou eu que sigo a Igreja, e sobre isto julgo não estar errado. Talvez algo tenha dado a impressão de ser um pouco mais "à esquerda", mas seria um erro de interpretação. Quanto a ser católico, se for necessário recitar o Credo, estou disposto a fazê-lo." E riu escancaradamente.
3. Afinal, o que é ser católico? Claro, professar o Credo. Mas, antes de mais, ser cristão. Acreditar, não em dogmas reificados, mas numa pessoa, Jesus Cristo, e no seu Evangelho, notícia boa e felicitante para todos, pois traz a salvação, o sentido pleno da vida. Entregar-se confiadamente a Deus, que é Amor. E tentar pôr essa fé em prática, a favor de todos, começando pelos mais frágeis.
Francisco acaba de dizê-lo de forma lapidar em Cuba: "Onde há misericórdia, aí está o espírito de Jesus. Onde há rigidez, estão apenas os seus ministros."