sempre em ditaduras.
Pensam pelo povo,
não deixam o povo pensar"
1. Francisco voltou ao seu continente. Numa maratona de oito dias, percorreu três países - Equador, Bolívia, Paraguai -, que escolheu, entre os mais pobres, ficando bem clara a agenda religiosa, social e política deste pontificado: a Igreja esteve, concretamente na América Latina, ao lado dos vencedores e opressores, mas agora fica do lado dos pobres e desprotegidos. E aí está o pedido humilde de perdão "não só pelas ofensas da própria Igreja, mas também pelos crimes contra os povos indígenas durante a chamada conquista da América".
Não é possível sintetizar a sinfonia de falas e gestos. Denunciou a corrupção como "a gangrena dos povos". Exaltou "a cultura do encontro". A diversidade não é "apenas boa, é necessária. A uniformidade anula-nos, torna-nos autómatos". "Somos convidados a assumir o conflito: o diálogo nem sempre é um ballet perfeito". Tudo tem de centrar-se no "reconhecimento da dignidade do outro", e "não há pessoas de primeira, de segunda, de terceira e de quarta. Têm a mesma dignidade". E, como sempre, riu e beijou e visitou prisões e um hospital de crianças com cancro e bairros da miséria e da desgraça. E teve celebrações multitudinárias, inseridas nos usos e costumes locais. Deu um louvor estrondoso às mulheres uruguaias: "Foram elas que souberam levar adiante o seu país em momentos dramáticos da História", disse, lembrando a Guerra da Tríplice Aliança entre 1864 e 1870, que dizimou a população. Aos jovens disse: "Façam barulho, mas organizem-no bem". Aos presos: reclusão não pode significar "exclusão". Aos bispos e padres: sejam pastores e não "capatazes". Aos empresários, políticos, economistas pediu para "não cederem ao modelo económico idólatra que precisa de sacrificar vidas humanas no altar do dinheiro e da rentabilidade". A um dado momento, esgotado, sussurrou a alguém: "Já não posso mais."
2. Para surpresa de muitos, incluindo o Papa, o presidente Evo Morales ofereceu-lhe um crucifixo com a foice e o martelo. Num primeiro momento, notou-se que Francisco ficou perplexo. Depois, já no avião, de regresso ao Vaticano, confessou que o tinha trazido com ele, pois não se sentira ofendido. Afinal, era inspirado numa escultura do padre jesuíta L. Espinal, teólogo da libertação, assassinado em 1980 por causa das suas lutas sociais. Escultor e poeta, Espinal era um entusiasta da análise marxista da realidade e também da teologia usando o marxismo, continuou Francisco, que sublinhou que, agora, para entender essa leitura e também o que considera esta "arte de protesto", como classificou o crucifixo, é preciso situar-se no tempo e fazer uma "hermenêutica geral": ler os textos nos contextos.
Penso que o gesto de Morales foi deselegante, pois sabia que iria, desnecessariamente, provocar imensas reacções negativas. De qualquer modo, o importante é perceber que, contra todos os seus críticos, Francisco não é comunista. Para entendê-lo, basta esta sua declaração: "As ideologias terminaram sempre em ditaduras. Pensam pelo povo, não deixam o povo pensar". E há muito que vem repetindo que não é contra os ricos: é contra a exploração.
É marxista? Aqui, exigir-se-ia uma longa explanação e distinguir bem, por exemplo, entre marxista, marxólogo e marxiano. Não é marxólogo, pois não o vejo como especialista em Marx. Também não é marxista. Mas é, com certeza, como todos os que andam atentos à cultura, marxiano, isto é, sabe que há contributos de Marx que fazem parte do background cultural comum e que não podemos pura e simplesmente ignorar na leitura da realidade. Os conceitos não são necessariamente virgens e puros, pois cada um lê a realidade a partir do seu lugar social: por exemplo, o conceito de justiça não será exactamente o mesmo para um financeiro bem sucedido e um operário em vias de ser despedido.
3. Habituados a ler a história pelo lado dos vencedores, esquecemos o seu reverso: a história dos vencidos, que também são gente, com igual dignidade, embora espezinhada. Francisco vai lê-la precisamente a partir desse outro lado: o das vítimas. E lá está o seu discurso, histórico, no encerramento do II Encontro Mundial dos Movimentos Populares, um dos mais surpreendentes da sua autoria. A sua crítica incide sobre um sistema global que "impôs a lógica dos lucros a qualquer preço, sem pensar na exclusão social ou na destruição da natureza". O mundo está submerso numa "terceira guerra mundial em quotas". Mas este sistema "já não se aguenta, os camponeses não aguentam, os trabalhadores não aguentam, os povos não aguentam". E a Terra "também não aguenta". Daí, a convocação de todos para uma "mudança de estruturas" e para a conversão. É preciso passar da globalização da exclusão e da indiferença para a globalização da partilha e da esperança. E é preciso saber que "o futuro da humanidade não está apenas nas mãos dos grandes dirigentes, das grandes potências e das elites. Está fundamentalmente nas mãos dos Povos".