Crónica de Maria Donzília Almeida
ANGE |
Foi ali, na marina da ANGE (Associação Náutica da Gafanha da Encarnação), que nos encontrámos. Estava eu a tomar um drink com uma amiga, numa pausa do trabalho.
Lugar acolhedor de encontros, desencontros e também de reencontros. Com a mansidão da ria a estender-se à nossa frente, de braço dado com a Mota, é o ex-libris da nossa pitoresca vila. A zona da Mota foi outrora ancoradouro de moliceiros, designados de “barcas” que movidas a energia eólica faziam o transporte destas gentes para a Costa Nova. A ponte da Barra no prolongamento da A25, aberta ao público em 1975, no fervor da revolução de abril, veio dar um novo incremento a esta zona ribeirinha.
No meu imaginário feminino, estamos na zona, por mim batizada de Marina/Mota!
Foi neste cenário de paz, emoldurado pela ria e pintado pelo colorido dos patinhos que se abeiraram de nós na procura do pãozinho para o bico, que fui surpreendida por aquela visita.
Foi introduzida por um barman que ali trabalha, nosso ex-aluno, que inquiriu se eu ainda reconhecia aquela elegante jovem. Aí, recuei no tempo e trouxe, à tona da memória, a figura cândida de uma antiga aluna. Era uma menina bonita, duma serenidade que deixava transparecer já, uma maturidade anacrónica.
Era a Camila! A primeira e única aluna que tive em quarenta anos, com um nome tão envolvente! Mal nos conhecemos, estabeleceu-se, de imediato, aquela empatia pedagógica que eu desejaria ter despertado em todos os meus alunos. Fez-me, na altura, evocar o meu primeiro ano no L.N.A.(Liceu Nacional de Aveiro) em 1960, com os meus dez aninhos, como ela, em que o livro de leitura extensiva fora “As Meninas Exemplares” da Condessa de Séguïr. Uma das personagens principais era a Camila… tinha, ali na frente a sua réplica…
O nome conquistou-me logo e a partir daí foi sempre a somar a avaliação da aluna! Tinha uma postura impecável, participava como uma mulherzinha e… tinha uma beleza angelical! Era uma aluna exemplar! Devorava livros a Camila! Contou-nos, às duas teachers que a ouviam que a sua professora de Português da altura, lhe trazia no final de cada semana, uma saca cheia de livros!
Daí, a sua superioridade em muitas matérias e domínios, em relação a outros alunos.
Narrou com a vivacidade dos seus frescos vinte anos as suas atividades atuis: frequenta um curso correspondente ao das suas interlocutoras, de há muitos anos a esta parte — Licenciatura em Inglês e Alemão, na Universidade de Aveiro. Vai desfiando o rosário da sua vida super preenchida de responsabilidades. Concomitantemente, com a frequência do curso, acumula três part-times, dois remunerados, o outro por dedicação familiar É a encarregada de educação, a tempo inteiro, de uma irmã adolescente que ficou aos seus cuidados, na ausência da mãe. Esta emigrara, na demanda do pão para a família.
Nós ouvíamos boquiabertas aquela epopeia, numa tão jovem heroína.
Com este background, não tem descurado o estudo, pondo-o sempre como meta principal e mantendo uma média invejável.
Afinal, nem toda a juventude é leviana, irresponsável e parasita. Estávamos na presença duma jovem bem determinada, que tem os pés bem assentes na terra e sabe bem o que quer. Lá nos foi confessando que tem projetos de futuro que não passam pela carreira do magistério. Não quer ser professora, pois tem a consciência da profissão de risco que comporta esta atividade. Quer enveredar pela carreira diplomática, para a qual tem todos os atributos de sucesso: uma vasta cultura geral, uma figura cativante e o domínio de várias línguas. Para a consecução deste projeto, planeia fazer uma pós-graduação, na Faculdade de Letras da Universidade do Porto.
Ao conversar com a Camila tive plena consciência que o sucesso se constrói de muito tenra idade e não basta ser dotado de alguma inteligência; é preciso ter-se uma vontade férrea e saber-se bem o que se quer, ter objetivos bem definidos na vida. A Camila, desde muito cedo, revelou estas e outras virtudes, demarcando-se da grande carneirada que só encontra pasto, em terrenos proibidos.