Crónica de Anselmo Borges
no DN
Anselmo Borges |
Hoje, ninguém duvida de que o Papa Francisco é uma autoridade moral global, talvez a figura mais popular do mundo e uma das mais influentes, servindo de exemplo a todos quantos exercem o poder. Trouxe a alegria, a ternura, a esperança, a compaixão, a simplicidade, a solidariedade, a sinceridade e a verdade, a justiça, a misericórdia, para a praça pública. E não quer fazer prosélitos, apenas que as pessoas vivam bem, com ânimo, no horizonte de uma vida feliz. E vai escrevendo as suas principais encíclicas: "as encíclicas dos gestos", diz o cardeal Maradiaga. Um destes dias recebeu a arcebispa de Upsala, Suécia, Antje Jackelén: "Querida irmã!" "Não somos adversários nem competimos, somos irmãos na fé." E haverá a comemoração conjunta luterano-católica da Reforma em 2017. E eu penso que seria então um acontecimento histórico o levantamento da excomunhão a Lutero.
Mas Francisco também sabe chamar as coisas pelos nomes. Assim, recordou o "atroz extermínio" do povo arménio, há 100 anos, considerando-o "o primeiro genocídio do século XX". Em face da reacção violenta do presidente turco, Recep Tayyip Erdogan, classificando as palavras papais como "estupidezes", mandou dizer que a linguagem da Igreja deve ser a da "franqueza". Três dias depois, o Parlamento Europeu instou a Turquia a "reconhecer o genocídio arménio e, assim, abrir caminho a uma verdadeira reconciliação entre os povos turco e arménio".
Outro exemplo. Obama alertou para os perigos das alterações climáticas: elas "não podem ser negadas". O secretário geral da ONU, Ban Ki-moon, louvou a liderança de Francisco na luta pelo meio ambiente. Mas muitos republicanos opõem-se aos esforços para reduzir os combustíveis fósseis e outras causas do aquecimento global. Francisco, porém, publicará a sua encíclica sobre o tema antes da visita aos Estados Unidos.
Não é obrigatório estar sempre de acordo com Francisco. Por exemplo, condenou o machismo, está a fazer esforços para que as mulheres ocupem lugares cimeiros de decisão na Igreja. Mas condenou igualmente "a teoria de género". Penso que, neste domínio, se impõe reflectir. De facto, se são de criticar as teorias de género que chegam a ponto de negar o lado biológico da identidade sexual, também se não pode ficar no naturalismo essencialista, que diz: as mulheres são inferiores por natureza e devem ficar confinadas a papéis de passividade e de reprodução. É preciso desmascarar as discriminações educacionais, sociais, profissionais a que as mulheres têm estado sujeitas. De qualquer modo, Francisco, também antes da visita aos Estados Unidos, pôs termo à desastrada investigação a que fora submetida a Conferência de Religiosas americanas por alegadamente promover "temas feministas radicais".
Francisco não tem opositores apenas fora da Igreja. Talvez os de dentro sejam até mais aguerridos.
Evidentemente, em Outubro próximo, com o Sínodo sobre a Família, Francisco fica debaixo de fogo, embora, como já afirmou, seja ele que, depois de ouvir a todos, terá a última palavra. Mas, por exemplo, o cardeal da Cúria, Robert Sarah, acaba de publicar o livro Dieu ou rien. Nele, pode ler-se: "Dar acesso à comunhão eucarística aos divorciados que voltaram a casar-se significa claramente, passando por cima da Palavra de Deus, a negação da indissolubilidade do matrimónio sacramental." "Como pode entender-se que pastores católicos submetam a voto a doutrina, a lei de Deus e o ensinamento da Igreja sobre a homossexualidade, o divórcio e o segundo casamento, como se a Palavra de Deus e o magistério tivessem de ser autenticados, aprovados pelo voto da maioria?" Agora, é revelado que mais de 225 mil pessoas, entre elas quatro cardeais, com Raymond Leo Burke à frente, e 22 bispos, assinaram uma petição contra a possibilidade de a Igreja integrar melhor os divorciados recasados e os homossexuais.
"A chegada à Sé de Pedro de um teólogo como Bento XVI é sem dúvida uma excepção. João XXIII não era teólogo de profissão. O Papa Francisco é também mais pastoral e a Congregação para a Doutrina da Fé tem como uma das suas missões promover a estruturação teológica de um pontificado". Estas palavras, que não poderão deixar de ser consideradas ofensivas para Francisco, são do cardeal Gerhard Ludwig Müller, prefeito dessa Congregação, que, numa conferência, disse que quer "precisar", "explicitar" textos de Francisco, para serem "compreendidos correctamente".
Há pouco, Francisco pediu numa paróquia: "Rezai por mim, que estou já um pouco velho e doente, embora não demasiado." Neste cenário, o cardeal Walter Kasper mostra-se inquieto e pergunta: "Será o pontificado de Francisco apenas um breve interlúdio na história da Igreja?" Felizmente, o papa emérito continua indefectível com Francisco, disse o irmão, Georg Ratzinger. E o cardeal Maradiaga, que preside ao grupo dos nove cardeais assessores, afirmou: "Quem diz que estamos num barco à deriva sabe pouco de navegação e de Francisco."