Crónica de Frei Bento Domingues
no PÚBLICO
«A Europa, depois de ver o Mediterrâneo
transformado num imenso cemitério,
resolveu discutir a atribuição, por cada país,
dos migrantes que batem à sua porta.
Veremos, como diz o cego.»
Frei Bento Domingues |
1. Ao começar a crónica deste Domingo, escrevi: a festa de Pentecostes não celebra o que já foi, mas o que falta fazer. De repente, deparei com a notícia: a morte de cerca de uma centena de passageiros de um navio carregado de migrantes do Bangladesh e da Birmânia.
Este navio andou quase dois meses à deriva no alto mar, depois da guarda costeira da Malásia e da Tailândia o ter impedido de aportar a estes países. A luta desesperada pelos últimos mantimentos, a bordo, provocou a morte de uma centena dos passageiros. Já em segurança na Indonésia, os sobreviventes contaram a crueldade dessas mortes: esfaqueados, sufocados, atirados ao mar.
A Europa, depois de ver o Mediterrâneo transformado num imenso cemitério, resolveu discutir a atribuição, por cada país, dos migrantes que batem à sua porta. Veremos, como diz o cego.
Apesar das apregoadas virtudes da modernidade e da laicidade, a fraternidade universal foi ficando pelo caminho. O pensamento liberto do obscurantismo da religião não construiu a realidade, segundo o bem do ser humano, isto é, de todos os seres humanos. A grande maioria não passa de simples meio e instrumento de uma minoria privilegiada.
Permito-me revisitar a Bíblia para recuperar algumas perspectivas para o presente e o futuro do ser humano, como animal sagrado e político.
A Bíblia – a biblioteca fundamental hebraica e cristã – nem sempre é muito recomendável. Nessa biblioteca há passagens criminosas e escandalosamente blasfemas que não ficam nada bem numa literatura divinamente inspirada. Hoje, depois de alguns estudos publicados nos Cadernos ISTA por Frei Francolino Gonçalves, professor da Escola Bíblica de Jerusalém, há mais de 40 anos e consultor da Pontifícia Comissão Bíblica, cheguei à conclusão – que só me responsabiliza a mim - que as Sagradas Escrituras estavam muito bem inspiradas acerca do bem a fazer e do mal a evitar. A literatura sapiencial, na sua mítica e simbologia, é admiravelmente universalista, mas a literatura nacionalista, a par de muitas maravilhas, mostra como os seres humanos podem cair na aberração de fazer de Deus um criminoso que incita à violência, isto é, o que nenhum Deus pode ser, fazer ou incitar a fazer. É apenas um ídolo do mal. Voltou nos nossos dias sob diversas formas e grupos.
2. A narrativa da criação – a não confundir com as representações das ciências – começa em beleza: No princípio, quando Deus criou os céus e a terra, a terra era informe e vazia, as trevas cobriam o abismo e o Espírito de Deus movia-se sobre as águas [1].O poema continua ao ritmo da natureza. Por fim, Deus disse: façamos o ser humano à nossa imagem e semelhança. O salmista, espantado, escreveu: o que é o Homem para te lembrares dele? Quase o fizeste um ser divino [2].
Esta maravilhosa criatura não está formatada nem para o bem nem para o mal. Pode fazer o melhor e o pior. Perante o crime de Caim, ouvimos a primeira pergunta de Deus: Que fizeste do teu irmão? Quem faz esta pergunta rompe o ciclo da violência. A guerra não é a boa lei da História. No Levítico nasce a regra de ouro: amarás o teu próximo como a ti mesmo, na sua diferença.
Tornou-se um hábito contrapor o Pentecostes cristão à Torre de Babel. Não nos precipitemos. O conto da construção dessa espantosa torre tem muitas lições ou, pelo menos, pode ter várias leituras. Por um lado, a eficácia e os benefícios de uma só língua, de uma só cultura e de uma só técnica. A imagem do sucesso sem obstáculos. A escalada do céu. O sonho de todas as pessoas, de todos os povos. Por outro, a complicação de várias línguas, de várias culturas, ter de traduzir e aprender uns com os outros. Diante destas dificuldades, quem não sonha ser um poliglota universal?
Deus aparece neste conto como ameaçado. De facto, o que Deus impede é a repetição do mesmo, a clonagem cultural e linguística. Defende a pluralidade de línguas e culturas. Os seres humanos só podem viver bem em relação uns com os outros: são todos mestres e discípulos, cooperantes.
A invenção do Espírito Santo, narrada na segunda obra de Lucas, ainda é mais divertida. O Espírito fez descer sobre cada um dos apóstolos línguas de fogo e eles começaram a falar outras línguas que nem conheciam. A multidão reuniu-se e ficou muito admirada, pois cada um os ouvia falar na sua própria língua e eram de muitos povos.
3. No começo dos Actos dos Apóstolos, Jesus Cristo manifestou-se um bocado desesperado. Tinha passado a vida a tentar convencer os Doze de que foram chamados, não para ocupar lugares de chefia, mas para dar a vida por um mundo novo, no qual as pessoas são apreciadas pelo serviço que prestam. Ele próprio veio para servir, não para dominar. No entanto, a única pergunta que lhe fazem depois da ressurreição é miserável: Senhor, será agora que vais restaurar a realeza em Israel? O Mestre é muito firme: só vos pertence ser minhas testemunhas até aos confins da Terra e da única coisa que precisais é do Espírito de Deus. Foi ele que animou a minha vida.
Não celebramos a festa de Pentecostes por nostalgia. A Terra nunca foi um paraíso. Precisamos do espírito do Pentecostes para que nenhuma geração desista de um mundo onde não haja indigentes, mas irmãos.
[1] Gn 1, 1-2; 26-27
[2] Sl 8, 4-7