Crónica de Frei Bento Domingues
no PÚBLICO
Frei Bento Domingues |
1. Encontrei-me, nesta Páscoa, com um grupo de antigos alunos que me veio convidar para um colóquio sobre os novos caminhos da cristologia.
Alguns deles situam-se nas trajectórias de nomes famosos como os de G. Vermes, Sanders, Theisen, Meier, Piñero, Torrents, S. Vidal e outros, mais ou menos alinhados na “terceira busca” ou investigação, do Jesus histórico. É inegável o valor extraordinário dessas reconstruções, embora para alguns comecem a ser entediantes.
A maioria segue os resultados dos importantes Colóquios organizados por Anselmo Borges, no Seminário da Boa Nova, em Valadares, entre os quais Quem foi/quem é Jesus Cristo?. Conhecem as múltiplas iniciativas editoriais de Tolentino de Mendonça, coroadas pela bela colecção Biblioteca Indispensável. J. Carreira das Neves é, desde há muito e para todos, a abelha incansável da Bíblia. Nenhum tinha ainda lido, por óbvias dificuldades de comunicação, O rosto humano de Deus, de A. Cunha de Oliveira, sobre o qual espero vir a escrever, com o vagar que o conjunto da obra deste autor merece.
2. Na conversa, os meus amigos começaram a lembrar–se do método que praticávamos, no século passado, nas iniciações ao conhecimento intelectual e afectivo, de Jesus de Nazaré, nossa paixão comum. Era um método algo anárquico, de desconstrução e de pistas para novos ensaios, sempre provisórios, alicerçados na convicção de que a eternidade teológica não era do nosso mundo.
A crítica exegética impedia o biblismo fundamentalista, o testemunho de Paulo e dos Actos dos Apóstolos, pareciam libertar Jesus das amarras da religião em que tinha sido educado, mas dividiam os seus primeiros discípulos acerca da “teologia patriótica” do povo eleito.
Ao contrário do que acontece agora, vivíamos preocupados sobretudo com a originalidade dessa fantástica figura judaica, rompendo com as tentativas da sua redução a uma simples tendência do judaísmo. Para nós, o que interessava era o Jesus homem livre, profeta de um Deus diferente, para a construção de um mudo novo. Não nos importávamos com a observação melancólica de Albert Scheweitzer, de 1906: cada época reconstrói o Jesus que lhe convém. Afinal, não era precisamente dessa evidência que testemunhavam os textos do Novo Testamento? Não se tratava de “processos verbais” dos passos de uma vida, mas peças interpretativas, geográfica e historicamente situadas já muito depois dos acontecimentos.
As nossas tentativas cristológicas começavam sempre pelas interrogações acerca do sentido ou sem-sentido do mundo, da história e da vida pessoal, ética e estética. Só depois desse percurso existencial e cultural, partíamos para as perguntas inevitáveis: Jesus Cristo, testemunhado pela multiplicidade e diferenciação dos textos do Novo Testamento, que sentido, que beleza, queexigência, que impulso vital e que responsabilidade ética e política trazia à nossa vida pessoal e cidadã? Este quadro aberto permitia incursões em muitas áreas de investigação e obrigava a debates que integravam percursos culturais e espirituais muito diversos.
Era um caminho que exigia um trabalho nunca acabado de religação entre todos os contributos. No âmbito teológico, viver a complexidade com alegria, recusando tanto o dogmatismo como o vale tudo, não era fácil para todos, sobretudo para quem tinha sido moldado pela repetição do credo, pelo catecismo e por uma educação moralista que conhecia o catálogo das proibições mas desconhecia as energias transformantes e criadoras das virtudes humanas e divinas.
Vivíamos uma convicção fundamentada: sem vigilância filosófica, sem cultura estética, sem diálogo com as questões emergentes das ciências, sem o conhecimento da história das outras experiências religiosas não se podia superar certa mentalidade católica com a obsessão das vozes da verdade gémea das vozes da estupidez.
3. Acabei por dizer aos meus amigos: viestes por causa da avaliação das novas tendências da cristologia e caímos na armadilha da saudade, como se fosse uma reunião de antigos combatentes. Tentemos não ser mortos vivos e escutemos as dores e as alegrias de parto desta época de grandes esperanças, mas também de muitos possessos da loucura desenfreada: Vão para a guerra, vão matar, roubar, violar. Deus olha (H. Helder). A comunidade internacional está cega.
A nossa linguagem sobre a ressurreição está cheia de metáforas mortas. Mas quando me deixo levar pelo que dizem as narrativas da Paixão e medito no Crucificado encontro-me dentro do poema de Herberto Helder: Estava tão morto que vivia unicamente…Renascia. O apóstolo Pedro chegou à mesma conclusão: a morte não O podia reter em seu poder (Act.2, 22-36).
Os cemitérios dizem-me que a “ressurreição” é a ideia mais justa do mundo e não pode ser adiada. A personalidade viva de cada ser humano só tem casa e jardim no coração de Deus, morada de todos, transfigurados. O ensaio começa aqui na transformação das relações humanas. Consta dos Actos dos Apóstolos 4, 32-35: não havia entre eles qualquer necessitado. Distribuía-se a cada um conforme a sua necessidade. O costume ainda não pegou.