Crónica de Frei Bento Domingues no Público
1. Sei que o título deste texto contraria a experiência de muitos católicos que se confessam ”não praticantes”, precisamente porque o velho preceito de assistir à Missa se lhes tornou impraticável. Um bom passeio, uma prática desportiva, o contacto com a natureza, um convívio com amigos, pelo bem que faz ao corpo e ao espírito, louva mais a Deus do que o aborrecimento de uma Missa enfadonha. Se aquilo era a festa da fé, preferiam ir ao café.
Apesar de tudo isso e de muito mais, mantenho o título, porque julgo que a celebração cristã do Domingo – se a comunidade celebrante encarnar e encenar hoje a significação da sua origem e da sua verdade – torna-se um divino antidepressivo semanal, um dispositivo contra o medo neste mundo carregado de ameaças e seguranças, um belo processo de refazer a vida e enfrentar os desafios de uma nova semana.
Não digo isto apenas porque os textos do domingo passado - o de S. Paulo, “se Deus está por nós, quem será contra nós” (Rm 8,31-34) e o de S. Marcos, sobre a transfiguração, quando Jesus se começa a sentir cercado (Mc 9, 2-10) - são evidentes e poderosas fontes de energia espiritual.
Não alinho, no entanto, com liturgias destinadas a provocar estados de descontrole emocional, lavagens ao cérebro, simulações de curas milagrosas ou qualquer outra tática para atrair clientes. Não me parece que seja esse o bom caminho para acabar com as missas consideradas uma seca, um aborrecimento ou um sacrifício inútil.
Como Nietzsche observou, a questão de fundo é de ordem antropológica: O cristianismo deu de beber veneno ao Eros, mas este não morreu, degenerou em vício. Sem tentar saber o que é o ser humano, na sua complexidade e unidade, interna e relacional, no seu devir no arquipélago das culturas, não poderemos encontrar a linguagem simbólica que diga em cada tempo e em cada povo, o mistério da Páscoa de Cristo, páscoa do mundo, nossa páscoa.
A ascese culpabilizante esquece, como dizia Tomás de Aquino, que recrear-se no prazer é uma virtude. Um cristão que não seja capaz de se divertir com os outros e ser divertido, não é um virtuoso, é um chato. Sem humor nem o amor tem graça.
Deveria ser possível praticar as realidades mais sérias da fé com a inteligência do humor, protecção contra o puritanismo. Quem toma tudo a sério e sobretudo quem se toma muito a sério, pensa que a inteligência se deveria calar onde começa a piedade. Contaram-me que um miúdo que acompanhava a avó à Missa, depois de comungar, ela vinha tão constrangida, com um rosto de tanto sofrimento que o neto lhe perguntava: “ó Avó, isso dói muito?”
2. Não estou a defender missas engraçadas nem missas desgraçadas. São ambas depressivas. A graçola não é a melhor linguagem litúrgica, embora não caia o Carmo e a Trindade se, numa celebração, escorregar alguma expressão que não agrade a todos os ouvidos. As comunidades não podem nem devem adoptar todas o mesmo padrão. Seria negar as exigências da inculturação litúrgica. Não vejo mal nenhum em que os católicos, quando isso é possível, possam escolher as celebrações que sejam, para eles, as mais significativas e estimulantes. Todas, porém, devem ser suficientemente abertas para não negarem a sua essência cristã: serem família com quem não é da família. Se recusamos uma sociedade de guetos, não a vamos consagrar na missa. Investe-se muito dinheiro na construção de uma igreja ou de um espaço para celebrar e cultivar a fé. Por vezes, onde não fazem falta e com gastos que a estética de uma Igreja serva e pobre condena. Mas quanto é que se investe na formação dos católicos e na preparação das celebrações, tendo em conta a qualidade dos textos, da música, da comunicação e da partilha dos bens?
O Papa fala muito contra o clericalismo. Os padres são poucos e não deixam ordenar as mulheres. Não havendo boas soluções à vista, os clérigos têm tendência a remediar-se chamando colaboradores e colaboradoras que os reproduzam, esquecendo que os ministérios, sejam eles quais forem, não são para substituir, mas para dinamizar toda a comunidade. A celebração é dela.
3. Quando afirmo que a celebração de Domingo – a missa - é, por essência, antidepressiva, não estou a situar-me no papel de psicólogo. Refiro-me a algo que pertence à própria natureza da Pascoa semanal, à nascente da Fé cristã. Vejamos.
A condenação de Jesus de Nazaré à morte – por crucifixão – e o silêncio de Deus deixaram os Apóstolos perdidos e sem reacção, salvo as mulheres. As narrativas do NT são muito claras a esse respeito. A belíssima peça literária - Os Discípulos de Emaús - uma espantosa catequese das componentes estruturais do itinerário cristão, mostra que é à volta da mesa, no partir do pão, na Eucaristia, que se revela, sem se ver, a força antidepressiva da presença do Ressuscitado.
A vida urbana de hoje é muito complicada, uma teia de obrigações: filhos, família, profissão e casa quase não deixam tempo para respirar. Onde buscar a energia espiritual para transfigurar a semana que passou e encontrar esperança para uma vida mais verdadeira? Desde há dois mil anos que os cristãos confessam que o Domingo é a festa de Deus, nossa festa.