Crónica de Anselmo Borges
no DN
Anselmo Borges |
Italo Calvino escreveu, em As Cidades Invisíveis: "A cidade de Leónia refaz-se a si própria cada dia que passa: todas as manhãs a população acorda no meio de lençóis frescos, lava-se com sabonetes acabados de tirar da embalagem, veste roupas novinhas em folha, extrai do mais aperfeiçoado frigorífico frascos e latas ainda intactos, ouvindo as últimas canções no último modelo do aparelho de rádio. Nos passeios, embrulhados em rígidos sacos de plástico, os restos da Leónia de ontem esperam o carro do lixo. Não só tubos de pasta dentífrica bem apertados, lâmpadas fundidas, jornais, contentores, restos de embalagens, mas também esquentadores, enciclopédias, pianos, serviços de porcelana: mais do que pelas coisas que dia-a-dia são fabricadas, vendidas, compradas, a opulência de Leónia mede-se pelas coisas que dia-a-dia se deitam fora para dar lugar às novas. De tal modo que há quem se interrogue se a verdadeira paixão de Leónia é realmente como dizem o gozar as coisas novas e diferentes, ou antes o rejeitar, o afastar de si, o limpar-se de uma constante impureza. A verdade é que os varredores são recebidos como anjos, e a sua tarefa de remover os restos da existência de ontem está rodeada de um respeito silencioso, como um ritual que inspira devoção, ou talvez porque uma vez deitadas fora já ninguém quer tornar a pensar nessas coisas."
Quem cita o texto é o filósofo João Maria André, numa conferência tão profunda como terna sobre o tema em epígrafe, e o que aí fica é uma breve síntese. Leónia é uma metáfora para a sociedade que quer o permanentemente novo, atirando o velho para fora. Mas hoje já não são apenas as coisas que se descartam, "descartam-se também as pessoas". Uma boa metáfora para "a sociedade líquida de consumo", num tempo de "turbo consumismo", que resulta numa felicidade paradoxal: "A felicidade está em ser-se permanentemente infeliz, porque o consumo aumenta cada vez mais a insatisfação e a felicidade da insatisfação é uma felicidade paradoxal." E aí está a solidão da "sociedade líquida" (Zygmunt Bauman): "Está só o que consome, porque se consome e tudo consome no consumismo; está só o que se vê excluído do consumo, porque não tem acesso a ele."
Há dois modos na solidão: não é a mesma coisa estar só e sentir-se só. O criador, o religioso, o artista, o político, em última análise, qualquer ser humano que não queira andar sempre distraído e à superfície das coisas, precisa de momentos de solidão, para reflectir e poder estar consigo no mais íntimo e com a transcendência e a fonte donde procede o ser e o criar: é a solidão habitada. A outra solidão é a solidão do abandono, dos restos, da exclusão. E cada vez mais é nesta que se está. Sobretudo os velhos. Nesta sociedade líquida do consumo e da vertigem da velocidade, não há solidez de relações e de afectos - as relações fazem-se e desfazem-se, os afectos "gastam-se e deitam-se fora"- nem memória nem futuro: descartam-se os velhos e não há crianças.
O ser humano enquanto pessoa é constitutivamente ser em relação, de tal modo que ser e ser em relação coincidem. A identidade é sempre atravessada pela alteridade, na interacção com os outros. Assim, ser pessoa enquanto liberdade é ser responsável, capaz de responder: "Ser é responder, responder ao dom que nos coloca no ser."
Então, com a solidão, no processo do envelhecimento, é a vulnerabilidade do ser humano que se manifesta: "um processo de identidade em ruptura"; "a pessoa só, sem pontes para os outros e para o mundo, é um ser assassinado na sua identidade"; "as pessoas sós são pessoas anónimas", na angústia da saudade do passado, na dissolução da memória e na perda do futuro, na incapacidade de ser projecto e, por isso, de esperança.
A pessoa humana não é espírito desencarnado, consciência abstracta. Dizia Laín Entralgo: eu sou um corpo que sente, que pensa, que espera, que ama, que diz eu. Somos presentes pelo corpo. Assim, a solidão é também ruptura com o corpo: a ausência da palavra, a ausência do gesto, da carícia, da ternura. E envelhecer é despedir-se do corpo, a sua perda lenta, no horizonte da morte: "A experiência da morte daqueles que amamos é a experiência de um corpo que, sendo o corpo deles, já não são eles no seu corpo."
Cá está então a ética do cuidado, no sentido profundo e abrangente, holístico, do cuidar, que rompe a solidão "através das portas corporais" e responde à vulnerabilidade do ser humano.
Porque é que nos sentimos sós? "Saber-se e sentir-se só é saber-se e sentir-se desabrigado, sem tecto, sem morada." Por isso, "ajudar a vencer a solidão é oferecer a alguém uma morada, uma hospedagem, o cuidado de um abrigo": o abrigo do nosso olhar, o abrigo do nosso ouvido, da nossa palavra, da nosso mão, dos nossos gestos, da nossa compreensão e confiança, da nossa estima, "chame-se amizade ou chame-se amor".