Crónica de Anselmo Borges no DN
Anselmo Borges |
No presente estado do conhecimento e do saber científico, impõe-se, contra o dogmatismo, uma atitude crítica, tanto por parte dos crentes como dos ateus. Refiro-me aos crentes e aos ateus que sabem o que isso quer dizer. Esta foi a mensagem fundamental deixada pelo jesuíta Javier Monserrat, neurólogo e filósofo, das universidades Autónoma e Comillas, de Madrid, nos debates que organizei no Porto, em Coimbra e em Lisboa, por ocasião da publicação do livro que coordenei: Deus ainda Tem Futuro? Deixo aí o essencial das suas exposições.
1. A revelação de Deus em Jesus e a revelação de Deus na criação vêm do mesmo Deus. Ele também se revelou no livro da natureza. Ora, como fez Deus a natureza? O único modo de sabê-lo é pela ciência e pela filosofia, e o que Deus disse em Jesus deve estar em harmonia com o que disse na criação.
2. Durante praticamente vinte séculos, o cristianismo foi interpretado dentro do paradigma greco-romano, com duas características fundamentais: o teocentrismo e o teocratismo, o que significou, por um lado, que Deus era evidente e patente, de tal modo que não havia humanismo sem Deus, e, por outro, que Deus era a origem da sociedade e do poder.
3. Com a modernidade, deu-se a ruptura. A modernidade significa o humanismo, a democracia, os direitos humanos, mas ela caracteriza-se fundamentalmente pela ciência, que é o elemento capital do novo paradigma.
A ciência moderna girou à volta da ciência mecano-clássica, com o mecanicismo e o determinismo. O diálogo com a fé foi então quase impossível, porque a ciência apareceu de modo dogmático: a verdade última revelava-se agora na ciência, sem Deus e contra Deus. Frente ao dogmatismo religioso, surgia o dogmatismo científico.
4. Nos dois últimos terços do século XX, a ideia da ciência em relação à matéria, ao cosmos e ao homem mudou. Com a mecânica quântica, a imagem do universo transformou-se, passando-se assim da modernidade dogmática à modernidade crítica. O ponto decisivo desta mudança é que caímos na conta de que o universo é enigmático e o homem já não tem que ver com a patência, mas com o enigma e a incerteza. Os dados da ciência levam a constatar a incerteza metafísica, de tal modo que é possível encontrar argumentos para dizer que Deus poderá ser o fundamento criador do mundo, mas também há argumentos para dizer que não há Deus. Aliás, esta é a constatação sociológica: é um facto que há crentes e ateus. O teísmo é possível e o ateísmo também. Portanto, quando o teísta, mesmo com argumentos que julga melhores - resposta à pergunta pela consistência do universo que se mostra finito, à sua ordem a caminho da sensibilidade e da consciência, ao princípio antrópico -, acredita em Deus, sabe que Deus poderá não existir, e o ateu, apesar das suas razões para sê-lo, sabe, se for crítico, que Deus poderá existir. Agora, o crente sabe que Deus criou o universo como é - este que conhecemos -, de tal modo que nos deixa na incerteza. Deus criou para a liberdade: Ele não se impõe.
5. O silêncio de Deus. Antes, Deus também estava em silêncio, como reflectiu a mística, mas, apesar do seu silêncio, Ele era evidente, patente. Ora, hoje não temos segurança real de que Deus exista, pois o ateísmo é realmente possível. O silêncio de Deus apresenta-se numa dupla forma: a) perante o conhecimento - o universo é um enigma e não é possível um saber claro quanto à ultimidade da realidade: é verosímil que Deus exista, mas também é possível que o mundo se auto-explique sem Deus; b) Deus está em silêncio perante o drama da história e da perversidade do homem: o mal cego da natureza, os horrores causados pela humanidade, a angústia perante a morte e o nada.
6. Todo o homem leva consigo esta angústia do silêncio de Deus, sempre. Daí, o ateísmo: nós, dirão os ateus, podemos explicar o universo sem Deus, e Deus, a existir, devia manifestar-se, mas o que vemos é a natureza cega e a perversidade humana. O ateísmo não é, porém, uma conclusão necessária e o que é facto é que a maior parte da humanidade sempre foi religiosa. O ser humano está de tal modo interessado na salvação que acreditou e acredita no Deus oculto e libertador-salvador.
7. Estamos num mundo enigmático, onde se pode ser ateu mas também se pode ser religioso. Dada a sua estrutura rácio-emocional, o homem tem uma confiança de base, que, enquanto religioso, se explicita numa confiança radical no mistério último, no Deus criador, oculto e salvador. Em Jesus, na sua vida e na cruz, o cristão encontra a resposta para as duas formas do silêncio de Deus: no cosmos e no drama da história. Jesus viveu a partir da sua experiência de radicação em Deus criador e assumindo o mistério do seu silêncio. Cristão é aquele que aceita o Deus que não vê e o drama que Jesus vive na cruz - "meu Deus, meu Deus, porque é que me abandonaste?"-, mas antecipando a salvação na ressurreição, a nova criação, na plenitude da vida eterna de Deus.