Ontem, quando disse à minha Aidinha que tinha de ir a Avanca, lembrei-me duma história do Egas Moniz, o nosso Prémio Nobel da Medicina e experiente colecionador. A história, contada pelo sábio, fala do poeta Guerra Junqueiro, também colecionador. Admiravam-se mutuamente e a disputa pela posse de um serviço de chá é contada pelo nosso primeiro Nobel.
«Um exemplo: um dia, Álvaro de Miranda conseguiu uma bela colecção de serviços de chá que pôs à venda. Sabia que eu era comprador e, como desejava transaccionar com brevidade a mercadoria, mandou-me um telegrama a pedir a minha visita. Como andava, de há muito, em busca destes objectos, segui, no dia imediato, no rápido da manhã, para a Granja. Na carruagem em que entrei também fazia viajem o grande poeta Guerra Junqueiro, a quem me prendia, com muita admiração pelo seu talento, uma amizade a que ele correspondia. Ora o autor de «Os Simples» era também um coleccionador afamado e apaixonado de objectos antigos de arte e conhecedor, a fundo, de porcelanas e faianças. Disse-me que ia passar um tempo à sua casa do Norte. Estranhei um pouco o nosso encontro a «caminho da Granja», mas não fiz reparo de maior. Chegados à estação, verifiquei que Guerra Junqueiro também se apeara e tive então a certeza de que fora avisado pelo Miranda da colecção que obtivera. Deu-se nessa altura uma espécie de marcha forçada para o estabelecimento de vendas, que ficava próximo, do lado oposto à estação, tendo por isso de se atravessar a linha.
Sentindo que ia ter um competidor de grande categoria, apressei o passo, não sei mesmo se cheguei a correr; e, como era mais novo, alcancei o estabelecimento antes que Guerra Junqueiro chegasse. Ao ver o meu avanço, não insistiu em apressar a marcha, dando-me uns minutos de vantagem, que aproveitei em ver as porcelanas. Sobre uma mesa grande havia vários serviços da China de chá: um azul e oiro, completo, um dos mais belos que conheci, um da Companhia das Índias, com firma, também completo, e mais dois incompletos, mas com peças interessantes, azul e branco e vermelho e branco e bastantes chávenas. Perguntei o preço total. Não discuti. – «Está tudo comprado; mas daqui não sai nenhuma peça, seja para quem for». Concordou comigo. Continuei: – «Vem aí o Guerra Junqueiro, que V. também avisou» – disse-lhe intencionalmente. Não negou. «Repare bem: o que está sobre a mesa já lhe não pertence».
Na impossibilidade de contar as peças, que passavam de 150, fui notando o que era mais importante, ficando assente que, no dia imediato, ficariam no «Marinheiro». Nisto, entrou o nosso querido Poeta. Logo se encaminhou para a mesa onde estavam expostas as preciosas porcelanas. Disse-lhe Álvaro Miranda que eu comprara o lote. Não desanimou de acarinhar uma malga do serviço azul e oiro, que desejava por todo o preço adquirir. Miranda bem lhe dizia que já lhe não pertencia; mas insistia com uma pertinácia digna de um coleccionador de grande classe. Sob o pretexto de ver outras antiguidades expostas, ia vigiando os movimentos do Poeta amigo, naquele momento competidor de temer. Miranda ainda ousou perguntar-me se podia ceder a linda tigelinha... – «Impossível. Então V., amador de coisas de arte, entende que eu posso consentir em ficar incompleto um serviço daquela categoria? É esse o seu grande valor. Comprei tudo. Nada lhe pertence do que aí está». E, dirigindo-me a Guerra Junqueiro: – «Adeus, caro amigo. Boa viagem. Eu sigo agora no tramway para a minha aldeia, onde receberei as suas ordens. Até breve». No dia imediato tinha em Avanca toda a encomenda e muito nos regozijámos com a vitória apontada.»
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