Crónica de Maria Donzília Almeida
"No entardecer da vida,
só o amor permanece"
São João da Cruz
A vida é uma grande viagem que empreendemos desde a nossa chegada a este mundo cruel. Mais ou menos atribulada, consoante os acidentes de percurso que nos vão surgindo pelo trilho, lá vamos caminhando, vencendo obstáculos, tropeçando em pedras... com elas se erguerá um castelo, na premonição de Fernando Pessoa!
À medida que vamos calcorreando a estrada, as nossas forças vão ficando depauperadas e cada vez é necessário mais dispêndio de energias para prosseguir o caminho.
Com os avanços da medicina, cada vez se atingem idades mais avançadas tornando-se a viagem mais longa, mas também mais penosa. E, quando as condições de saúde se tornam precárias, mais necessidade de apoio precisamos nesse patamar da vida.
Até meados do século passado, altura em que encetei a minha própria viagem, era comum e até ponto de honra para a família, manter os seus velhinhos em casa, numa coabitação de várias gerações, enriquecendo e fomentando o diálogo intergeracional. As habitações eram muito humildes quando comparadas com as mansões de hoje, nadando em espaço e conforto. Era rara a casa de família, nesses tempos remotos da Gafanha rural que dispunha de instalações sanitárias e outras comodidades básicas. Eram casas vazias de conforto, mas cheias de amor…eram lares autênticos e mantinham essa prerrogativa até ao fim da vida de todos os familiares. Não havia lares de primeira nem de segunda e eram inexistentes os lares de terceira idade, um neologismo criado pela dinâmica da língua. Quando se construía uma casa, era-lhe dada a categoria de lar até se esgotar a vida das gerações que nela viveram, numa clara rentabilização do investimento feito.
Hoje, constroem-se sumptuosos palácios que têm uma vida efémera: são habitação para os pais e para os filhos até à maioridade, altura em que se emancipam e procuram o seu próprio lar. Aqueles casarões que outrora foram ninho de passarinhos, ficam às moscas quando aqueles bateram as asas em demanda de outras latitudes.
Ah! Mas o lar que criou gente nova, justificaria a sua existência e continuidade, dando guarida e apoio aos velhinhos da família que nesta etapa da viagem carecem de cuidados e carinhos redobrados.
“Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades”! Nunca como hoje foi tão acutilante e atual a asserção feita por Camões, no século XVI. Vivemos na era da mudança, de grandes avanços tecnológicos, de criação de riqueza material e de pobreza de sentimentos! De uma materialização e desumanização crescente da sociedade. É gritante a crueldade que paulatinamente, mas em crescendo, se tem instalado nas pessoas ditas e assumidas como civilizadas. É chocante a leviandade com que alguns filhos depositam os pais, velhinhos, vulneráveis e indefesos nos “reputados” Lares de 3ª idade! São lugares de massificação dos cuidados de saúde e higiene, prestados num ambiente assético. O carinho, o afeto, o amor, a “contaminação” do ambiente familiar de que tanto precisam os idosos, na fase terminal das suas vidas, são-lhes dispensados ali, por mercenários, perdoem-me o vernáculo!
Sem pretender desdenhar da utilidade/necessidade das instituições que prestam serviços úteis a um setor da população, aos que não têm família, ou outros casos pontuais com perfeita justificação, são, quanto a mim, um mal necessário, numa sociedade eticamente enferma.
A melhor forma de entendermos os outros, neste caso os velhinhos, é metermo-nos na pele deles, pois só assim poderemos percecionar a profunda tristeza, o abandono, o sofrimento físico e moral, quando se aproxima a hora da partida.
Evoco agora, neste contexto, as palavras sábias do meu pai: “Filho és, pai serás! Assim como fizeres, assim receberás”!