Reflexão semanal de Georgino Rocha
A visita nocturna de Nicodemos a Jesus, apresentada no Evangelho de João, faz parte da secção narrativa de factos e pessoas que dão o seu contributo para dizer quem é Jesus. Surge após o testemunho de João Baptista que actua em vários cenários, a mudança da água em vinho de qualidade na festa de um casamento em Caná da Galileia, a operação-limpeza do Templo em Jerusalém e o primeiro anúncio da edificação de um novo templo. O autor do 4º Evangelho acrescenta: “Falava do Seu corpo”, afirmação que veio a ser compreendida pelos discípulos, após a ressurreição.
Nicodemos inicia o diálogo com uma certeza: Só quem tem Deus consigo pode realizar os sinais/as obras que Jesus faz; certeza que manifesta o seu conhecimento e a sua cultura e revela a sua capacidade de reflexão e de chegar a conclusões. Certeza que, apesar de consistente, quer ver confirmada, talvez questionada e debatida. Jesus acolhe a sua declaração sincera e dá uma sábia resposta, encaminhando o centro da conversa para o Reino de Deus e para a necessidade imprescindível de “nascer de novo” por meio da água e do Espírito.
Esta resposta deixa perplexo Nicodemos que a considera muito estranha e impossível, naturalmente pensando. Jesus insiste no que havia dito e, mediante um processo de pergunta-resposta, lança o coração humano “noutra onda”, na realidade profunda do amor de Deus. Recorre a contrastes esclarecedores e interpelantes: Subir e descer, serpente de Moisés e cruz do Filho do Homem, morte e vida, juízo de condenação e amor de salvação.
O contraste “subir-descer” indica-nos a vocação a que todos estamos chamados e o caminho da sua realização: fazer-se humano, apreciar o húmus da nossa comum humanidade, reconhecer o outro como um irmão, solidarizar-se com os seus êxitos e fracassos, alimentar sonhos de vida eterna e de felicidade definitiva, valorizar limitações e desenvolver capacidades, respeitar a criação e as criaturas, defender o equilíbrio da terra e do meio ambiente, situar o espaço local no mundo como um todo e proceder de forma coerente, aceitar-se pecador com necessidade de perdão, acolher o amor de compaixão e misericórdia. Jesus dá o exemplo: Ele, o Verbo de Deus na linguagem de João, monta a sua tenda entre nós, habita na nossa terra, faz-se tão humano que só podia ser Deus (Boff).
O contraste “serpente-cruz” chama a nossa atenção para a importância de erguer a cabeça e saber olhar, de ter horizontes rasgados, de descobrir o lado belo da vida contido nas feridas provocadas pelo veneno de morte de intrigas e ciúmes, de inimizades e malvadezes, pela perseguição injusta ao inocente reconhecido. Este lado belo brota do amor de doação, da entrega incondicional a Deus que realiza o seu projecto de salvação, respeitando – oh admirável modo de proceder/condescendência! – a liberdade humana, ainda que usada de modo arbitrário. A beleza da cruz de Jesus no Calvário brilha, em virtude do amor que nos tem, nas cruzes da vida sofrida, na morte humana natural que abre as portas da eternidade feliz, fazendo acabar o sofrimento e saborear o colo de Deus Pai.
A Igreja vive do amor que faz da maldição da cruz ignominiosa a bênção exuberante da ressurreição humana, do inverno glacial da indiferença e do ódio a primavera florida de envolvimentos voluntários pelo bem dos outros; primavera promissora de um novo modo de estar na vida, de avaliar o que é importante, de aspirar sempre ao bem maior, de querer positivamente construir a civilização do amor alicerçada na doação de Jesus Cristo.
O sinal da cruz, feito em oração pessoal ou conservado em espaços públicos, testemunha este propósito cristão, esta prioridade dada ao bem do outro, esta vontade positiva de desvendar novas dimensões ao viver quotidiano, esta certeza inamovível de que só o amor solidário espelha a dignidade inalienável que é pertença de todos os seres humanos. Sem a compreensão do sentido da cruz, os seus sinais podem incomodar e serem removidos. Mas a sociedade fica mais pobre, mais desumana, mais individualista, mais “atolada” no seu casulo egoísta e consumista. A cruz por excelência é agora a pessoa, toda a pessoa. O exemplo vem de Jesus Cristo, por vontade de Deus.
Bendita cruz implantada na terra e erguida aos céus. Em ti brilha o pior e o melhor da humanidade, a paixão injusta de sexta-feira santa, a aurora feliz da Páscoa da ressurreição. Oxalá sejas sempre gloriosa! E a criação inteira possa entoar os aleluias de alegria e festa. E a humanidade toda saborear o amor que dá sentido aos gemidos e gritos de agora.