Crónica de Anselmo Borges no DN
Sobre o paradoxo da Igreja, o sociólogo Olivier Bobineau tem um texto penetrante e inexcedivelmente límpido. "A Igreja Católica é uma junção paradoxal de dois elementos opostos por natureza: uma convicção - o descentramento segundo o amor - e um chefe supremo dirigindo uma instituição hierárquica e centralizada segundo um direito unificador, o direito canónico. De um lado, a crença no invisível Deus-Amor; do outro, um aparelho político e jurídico à procura de visibilidade. O Deus do descentramento dos corações que caminha ao lado de uma máquina dogmática centralizadora. O discurso que enaltece uma alteridade gratuita coexiste com o controlo social das almas da civilização paroquial - de que a confissão é o arquétipo - colocado sob a autoridade do Papa. Numa palavra, a antropologia católica tenta associar os extremos: a graça abundante e o cálculo estratégico. Isso dá lugar tanto a São Francisco de Assis como a Torquemada."
Será este paradoxo, para não dizer contradição, superável?
Não há dúvida de que o Papa Francisco, com os seus gestos e palavras, está a dar uma nova imagem da Igreja, mais próxima de Jesus. Em vez de uma Igreja poderosa, rígida, ele mostra uma Igreja acolhedora, pobre, simples. Já não uma Igreja obcecada com o sexo, mas uma Igreja centrada na mensagem libertadora do Evangelho. Não uma Igreja inquisitorial, "alfândega", mas uma Igreja da misericórdia. Não uma Igreja "autorreferencial", mas uma Igreja ao serviço de todos, sobretudo dos das "periferias" geográficas e existenciais. Uma Igreja profética, que diz não ao deus Dinheiro, que mata. Uma Igreja que não discrimina mas que vai ao encontro também dos que pensam de modo diferente e que respeita a consciência de cada um. Uma Igreja que não tem respostas para tudo mas que procura a verdade, dialogando com as outras confissões cristãs, com as outras religiões, com os ateus e indiferentes. Uma Igreja com fé e em constante conversão.
Mas a outra vertente - a institucional - é igualmente decisiva. Também aqui, Francisco está a trabalhar com afinco. Faz questão de não se chamar Papa, mas Bispo de Roma, querendo, portanto, rever o primado papal, para caminhar no sentido da sinodalidade, dando lugar a um Sínodo deliberativo e não meramente consultivo e poder às conferências episcopais. Sem reforma estrutural da Cúria não haverá renovação. É preciso rever o modo de eleição do Papa, que pode ser entregue aos presidentes das conferências episcopais do mundo inteiro e outros representantes da Igreja universal. Os bispos deveriam ser escolhidos pelos padres das dioceses e por tempo determinado, podendo o seu mandato ser renovado. É urgente encontrar formas de controlo do poder, havendo também lugar para uma opinião pública na Igreja. A formação do clero, que em princípio não deveria viver do altar, tem de ter outro enraizamento na vida real (por exemplo, quantos padres vivem a angústia do possível desemprego?). Mais tarde ou mais cedo, acabar-se-á com a lei do celibato obrigatório e também com a discriminação das mulheres no acesso aos ministérios ordenados. Se a Igreja é o Povo de Deus e não a hierarquia, que está apenas ao serviço do povo, todos têm de ter lugar em toda a vida eclesial.
Sem uma nova Constituição para a Igreja, um outro papa poderia declarar que o pontificado de Francisco foi apenas um interregno, voltando tudo à situação anterior.