domingo, 20 de julho de 2014

QUE TROUXE DE NOVO O PAPA FRANCISCO (4)

Crónica de Frei Bento Domingues no PÚBLICO

1. Um velho amigo, com uma ponta de censura, telefonou-me para me dizer: o Papa argentino não precisa nem de defesa nem de apologética. Precisa de colaboradores. Ele não despertou apenas a esperança em muitos cépticos e desiludidos.

Fez uma convocatória para participarmos todos numa reforma da Igreja ao serviço da transformação das sociedades dominadas pelo império do dinheiro. Cerca de 85% dos recursos são consumidos pelos 20% mais ricos da população mundial. Isto significa, para o físico ambientalista, Mohan Munasinghe, que os ricos do mundo estão a consumir mais do que um planeta Terra [1]. Afinal, quem vive acima das suas possibilidades? Perguntas destas suscitam apenas o sorriso dispensado aos ingénuos inveterados.



O mais sensato talvez seja resignar-se e ter a humildade de Kant: “a razão humana, num determinado domínio dos seus conhecimentos, possui o singular destino de se ver atormentada por questões impostas pela natureza, que não pode evitar, mas às quais também não pode dar resposta, por ultrapassarem as suas possibilidades [2].

A humildade deste filósofo não era a da resignação, mas a da crítica, à qual nada deve, honestamente, escapar. Advertiu: se a religião pela sua santidade e a lei pela sua majestade, quiserem subtrair-se a essa instância, suscitam, contra elas, justificadas suspeitas. Não poderão aspirar ao sincero respeito que a razão só concede a quem pode sustentar o seu livre e público exame.

A consciência dos limites não o paralisou. Levou-o a formular as questões fundamentais: 1. Que posso eu saber? 2. Que devo eu fazer? 3. Que me é permitido esperar? 4. O que é o Homem? As três primeiras estão incluídas na última.

Martin Buber (1878-1965) descreveu o percurso desta interrogação fundamental, antes e depois de Kant, sensível à queixa de Malebranche, datada de 1674: “entre todas as ciências humanas, a do homem é a mais digna dele. No entanto, entre todas as ciências que possuímos, não é nem a mais cultivada nem a mais desenvolvida” [3].

Seguindo a posteridade da interrogação kantiana, desde Hegel a Marx, de Feuerbach a Nietzsche e a Freud, de Kierkegaard a Heidegger e a Scheler, mostra que o ser humano, ao abrir uma janela, costuma fechar duas. Depois, vem a lamentação: por que razão somos tão ininteligíveis?

Seja como for, a herança de Kant é grandiosa, embora sem muitos pretendentes: o ser humano não tem preço, tem dignidade, não é uma mercadoria, não pode ser um instrumento.

2. Na última página do seu ensaio, Martin Buber enriquece essa herança. Sustenta que unicamente na relação viva será possível reconhecer a essência peculiar do ser humano. O eu só existe na relação com o tu. Poderemos aproximar-nos da resposta à pergunta - “O que é o homem?”- se compreendermos que é na dialógica - no “estar-dois-em-recíproca-presença”-, e só nela, que ele se reconhece e realiza. Acontece em cada encontro de um com o outro.

Como as religiões não se quiseram expor à crítica, como recomendava I. Kant, deixaram de constituir uma esperança fiável e foram acusadas de tudo: de serem fontes de conflito pelo seu dogmatismo e vontade de dominação, de serem alienantes, um protesto social inconsequente, de falsificarem a realidade, de serem uma ilusão dispensável.

Da crise das religiões, à crise da religião, da crise da religião à morte cultural de Deus, a procissão não foi longa. O vazio que se seguiu não foi o do místico. Teve muito de niilista e de indiferença. Do fim da religião ao regresso do Sagrado houve, e continua a haver, notícias para todos os gostos.

3. O Papa Francisco quase fez um milagre. A organização e a vida da Igreja não têm de ser uma fonte de más notícias. Ao enfrentar alguns aspectos da hipocrisia que dominou o comportamento de certos padres, bispos e cardeais reconduziu a Igreja à sua missão: tornar possível a esperança, fazer do anúncio do Evangelho uma alegria e não confundir o confessionário com uma câmara de tortura.

Não diz isto de forma abstracta. Convocou todos os seres humanos de boa vontade para que as calamidades ambientais, financeiras e económicas, frutos de vários tipos de corrupção, não sejam uma fatalidade, perante a qual não há nada a fazer.

No momento em que a política, em todo o mundo, está desacreditada pelos mais diversos motivos, o Papa Francisco resolve lembrar que a vocação de todos os políticos é tutelar o bem comum e não os interesses pessoais ou de grupo, os cúmplices da corrupção. Lembra que Paulo VI costumava dizer que a missão da política é uma das formas mais elevadas da caridade. Hoje, e o problema é mundial, desvalorizou-se, foi arruinada pela corrupção, pelo fenómeno das comissões ilegais. Recorda um documento que os bispos franceses publicaram há quinze anos: uma carta pastoral que se intitulava Reabilitar a política.

Reabilitar a imagem da Igreja e reabilitar a missão dos políticos não é pedir pouco a um só papa, mesmo ao Papa Francisco.

[1] Cf Entrevista no Público,14/07/ 2014

[2] Cf I. Kant no Prefácio da primeira da edição de 1781, da Crítica da Razão Pura

[3] M. Buber Qué es el Hombre, Fondo de Cultura Económica, Madrid, 1986


- Posted using BlogPress from my iPad

Etiquetas

A Alegria do Amor A. M. Pires Cabral Abbé Pierre Abel Resende Abraham Lincoln Abu Dhabi Acácio Catarino Adelino Aires Adérito Tomé Adília Lopes Adolfo Roque Adolfo Suárez Adriano Miranda Adriano Moreira Afonso Henrique Afonso Lopes Vieira Afonso Reis Cabral Afonso Rocha Agostinho da Silva Agustina Bessa-Luís Aida Martins Aida Viegas Aires do Nascimento Alan McFadyen Albert Camus Albert Einstein Albert Schweitzer Alberto Caeiro Alberto Martins Alberto Souto Albufeira Alçada Baptista Alcobaça Alda Casqueira Aldeia da Luz Aldeia Global Alentejo Alexander Bell Alexander Von Humboldt Alexandra Lucas Coelho Alexandre Cruz Alexandre Dumas Alexandre Herculano Alexandre Mello Alexandre Nascimento Alexandre O'Neill Alexandre O’Neill Alexandrina Cordeiro Alfred de Vigny Alfredo Ferreira da Silva Algarve Almada Negreiros Almeida Garrett Álvaro de Campos Álvaro Garrido Álvaro Guimarães Álvaro Teixeira Lopes Alves Barbosa Alves Redol Amadeu de Sousa Amadeu Souza Cardoso Amália Rodrigues Amarante Amaro Neves Amazónia Amélia Fernandes América Latina Amorosa Oliveira Ana Arneira Ana Dulce Ana Luísa Amaral Ana Maria Lopes Ana Paula Vitorino Ana Rita Ribau Ana Sullivan Ana Vicente Ana Vidovic Anabela Capucho André Vieira Andrea Riccardi Andrea Wulf Andreia Hall Andrés Torres Queiruga Ângelo Ribau Ângelo Valente Angola Angra de Heroísmo Angra do Heroísmo Aníbal Sarabando Bola Anselmo Borges Antero de Quental Anthony Bourdin Antoni Gaudí Antónia Rodrigues António Francisco António Marcelino António Moiteiro António Alçada Baptista António Aleixo António Amador António Araújo António Arnaut António Arroio António Augusto Afonso António Barreto António Campos Graça António Capão António Carneiro António Christo António Cirino António Colaço António Conceição António Correia d’Oliveira António Correia de Oliveira António Costa António Couto António Damásio António Feijó António Feio António Fernandes António Ferreira Gomes António Francisco António Francisco dos Santos António Franco Alexandre António Gandarinho António Gedeão António Guerreiro António Guterres António José Seguro António Lau António Lobo Antunes António Manuel Couto Viana António Marcelino António Marques da Silva António Marto António Marujo António Mega Ferreira António Moiteiro António Morais António Neves António Nobre António Pascoal António Pinho António Ramos Rosa António Rego António Rodrigues António Santos Antonio Tabucchi António Vieira António Vítor Carvalho António Vitorino Aquilino Ribeiro Arada Ares da Gafanha Ares da Primavera Ares de Festa Ares de Inverno Ares de Moçambique Ares de Outono Ares de Primavera Ares de verão ARES DO INVERNO ARES DO OUTONO Ares do Verão Arestal Arganil Argentina Argus Ariel Álvarez Aristides Sousa Mendes Aristóteles Armando Cravo Armando Ferraz Armando França Armando Grilo Armando Lourenço Martins Armando Regala Armando Tavares da Silva Arménio Pires Dias Arminda Ribau Arrais Ançã Artur Agostinho Artur Ferreira Sardo Artur Portela Ary dos Santos Ascêncio de Freitas Augusto Gil Augusto Lopes Augusto Santos Silva Augusto Semedo Austen Ivereigh Av. José Estêvão Avanca Aveiro B.B. King Babe Babel Baltasar Casqueira Bárbara Cartagena Bárbara Reis Barra Barra de Aveiro Barra de Mira Bartolomeu dos Mártires Basílio de Oliveira Beatriz Martins Beatriz R. Antunes Beijamim Mónica Beira-Mar Belinha Belmiro de Azevedo Belmiro Fernandes Pereira Belmonte Benjamin Franklin Bento Domingues Bento XVI Bernardo Domingues Bernardo Santareno Bertrand Bertrand Russell Bestida Betânia Betty Friedan Bin Laden Bismarck Boassas Boavista Boca da Barra Bocaccio Bocage Braga da Cruz Bragança-Miranda Bratislava Bruce Springsteen Bruto da Costa Bunheiro Bussaco Butão Cabral do Nascimento Camilo Castelo Branco Cândido Teles Cardeal Cardijn Cardoso Ferreira Carla Hilário de Almeida Quevedo Carlos Alberto Pereira Carlos Anastácio Carlos Azevedo Carlos Borrego Carlos Candal Carlos Coelho Carlos Daniel Carlos Drummond de Andrade Carlos Duarte Carlos Fiolhais Carlos Isabel Carlos João Correia Carlos Matos Carlos Mester Carlos Nascimento Carlos Nunes Carlos Paião Carlos Pinto Coelho Carlos Rocha Carlos Roeder Carlos Sarabando Bola Carlos Teixeira Carmelitas Carmelo de Aveiro Carreira da Neves Casimiro Madaíl Castelo da Gafanha Castelo de Pombal Castro de Carvalhelhos Catalunha Catitinha Cavaco Silva Caves Aliança Cecília Sacramento Celso Santos César Fernandes Cesário Verde Chaimite Charles de Gaulle Charles Dickens Charlie Hebdo Charlot Chave Chaves Claudete Albino Cláudia Ribau Conceição Serrão Confraria do Bacalhau Confraria dos Ovos Moles Confraria Gastronómica do Bacalhau Confúcio Congar Conímbriga Coreia do Norte Coreia do Sul Corvo Costa Nova Couto Esteves Cristianísmo Cristiano Ronaldo Cristina Lopes Cristo Cristo Negro Cristo Rei Cristo Ressuscitado D. Afonso Henriques D. António Couto D. António Francisco D. António Francisco dos Santos D. António Marcelino D. António Moiteiro D. Carlos Azevedo D. Carlos I D. Dinis D. Duarte D. Eurico Dias Nogueira D. Hélder Câmara D. João Evangelista D. José Policarpo D. Júlio Tavares Rebimbas D. Manuel Clemente D. Manuel de Almeida Trindade D. Manuel II D. Nuno D. Trump D.Nuno Álvares Pereira Dalai Lama Dalila Balekjian Daniel Faria Daniel Gonçalves Daniel Jonas Daniel Ortega Daniel Rodrigues Daniel Ruivo Daniel Serrão Daniela Leitão Darwin David Lopes Ramos David Marçal David Mourão-Ferreira David Quammen Del Bosque Delacroix Delmar Conde Demóstenes

Arquivo do blogue

Arquivo do blogue