Crónica semanal de Anselmo Borges*
no Diário de Notícias
O mundo não é igual para todos. O mundo visto a partir de uma grande metrópole não coincide com o que se vê a partir do campo. Uma família feliz e uma família desgraçada não olham para o mundo do mesmo modo. Há sempre um ângulo de visão, um ponto de vista, e projectamos sobre o mundo os nossos interesses, medos e expectativas. O mundo que um banqueiro perspectiva diferencia-se do de um desempregado. O mundo visto a partir do poder não coincide com o mundo visto a partir das vítimas, dos pobres, dos sem-abrigo. Uma coisa é olhar para o mundo a partir da janela mais famosa do planeta - a janela do Palácio Apostólico no Vaticano - e outra coisa é vê-lo a partir da Casa de Santa Marta, onde vive o Papa Francisco. E a visão que temos do mundo também nos transforma a nós. De qualquer modo, não há olhares absolutamente límpidos, objectivos, neutros, pois estamos sempre situados.
Em Buenos Aires, o arcebispo foi sempre um "poder". Simbolicamente, a Praça de Maio reúne os poderes da nação: o palácio do presidente, a catedral, o Ministério da Economia... Ora, como faz notar o padre Di Paula, "Bergoglio nunca olhou para a realidade a partir da perspectiva da Praça de Maio, mas dos lugares da dor, da miséria, da pobreza. A partir de baixo: de uma aldeola ou de um hospital". E o impressionante é que o seu ângulo de visão continuou o mesmo enquanto Papa: a partir dos pobres, dos marginalizados, dos doentes, dos feridos, numa palavra, não a partir do centro e do alto, mas a partir das periferias e de baixo. De tal modo que conquistou a simpatia do mundo, tornando-se talvez a figura mais popular e influente do planeta. Fez como Deus feito carne humana visível em Jesus: sem menosprezar ninguém, olha para o mundo amando todos, como um pai ou uma mãe, mas atendendo de modo especial os que mais precisam.
A citação é tirada do livro Francesco tra i Lupi, que também dá título a esta crónica, do vaticanista famoso Marco Politi. A finalidade da obra é, de modo fino, denunciar a oposição silenciosa a Francisco por parte de vários grupos ultraconservadores, na Cúria e fora dela. "Os lobos espreitam a revolução pacífica de Francisco", usando a sua personalidade latino-americana para desprestigiá-lo. "Fala como um pároco de aldeia", diz um cardeal. Muitos não digeriram que se não tenha transferido para o palácio papal. São muitas as oposições, concretamente em sítios ultratradicionalistas da net, acusando-o de "demagogia, populismo, pauperismo, levar a uma "protestantização" da Igreja, diminuir o primado papal". Politi acrescenta, numa entrevista à AFP: "Há oposições, no plural. Há prelados a favor de um lado e contra do outro. Uns estão a favor da comunhão para os divorciados recasados, mas não aceitam que as mulheres cheguem a cargos de poder na Igreja. Outros pensam que não se deve ser tão duro com os homossexuais, mas opõem-se à legalização do casamento homossexual". Criticam --no por dar entrevistas a jornais, por criticar tanto os padres, por tanta insistência na misericórdia, atenuando o rigor doutrinal, por infringir o protocolo. "Há muita resistência passiva, inércia. Não se faz nada. Esperam." Afinal, "os Papas passam, a Cúria permanece". Em Roma, querem "fechar o mundo num preservativo", é o dito que lhe atribuem, quando era cardeal.
Ousou excomungar a máfia, que já o desafiou: 200 presos mafiosos negaram-se a ir à missa e, numa procissão, o andor com a Nossa Senhora das Graças parou meio minuto e inclinou-se diante da casa do padrinho Giuseppe Mazzagatti, de 82 anos, condenado a prisão perpétua, mas em detenção domiciliária por motivos de saúde.
"Francisco está a tocar em grandes interesses económicos e o alarme do juiz italiano Nicola Grattieri de um atentado contra ele é muito sério." É muito incómodo um papa empenhado em "fazer limpeza total", a máfia financeira está perturbada por um pontífice que "rema contra o luxo, é coerente, é credível". E não tem medo.
*Padre e professor de Filosofia
Por decisão pessoal, o autor do texto não escreve segundo o novo Acordo Ortográfico