Crónica de Anselmo Borges
O pior do nosso tempo é a entrega desvairada ao consumismo, ao ruído e à satisfação imediata e saltitante de prazeres velozes e, conse-quentemente, à vozearia da insensatez que não pensa. Fica então o esquecimento do enigma da vida e da busca de respostas para as imensas e prementes perguntas que erguem o ser humano à sua estatura de homem: porque há algo e não nada, a questão do mal e do sofrimento, da felicidade e da morte, de Deus e do sentido último da existência.
Já G. Scholem avisou: "Se o sentimento de que o mundo esconde um mistério desaparecer, tudo terá acabado. Em qualquer caso, não creio que cheguemos tão longe." Mas talvez não andemos mesmo muito longe. De qualquer modo, quem não andar completamente distraído e conservar ainda um sentido mínimo pelo perguntar e de compaixão pela humanidade será frequentemente esmagado pela pergunta que o ateu E. Bloch formulou nestes termos: "Por que é que nós, que somos limitados em tudo, sofremos ilimitadamente?" E morremos. Sobre este tema escreveu G. Steiner este texto poderoso e intenso: "Sabemos que a Sexta-Feira Santa do cristianismo é a da Cruz. Mas o não cristão, o ateu, também a conhece. Significa que ele conhece a injustiça, o sofrimento interminável, a devastação, o brutal enigma do fim, que em grande medida constituem não só a dimensão histórica da condição humana, mas também o tecido quotidiano das nossas vidas provadas. Conhecemos, inevitavelmente, a dor, a falência do amor e a solidão que são a nossa história e o nosso destino pessoal. Também conhecemos o Domingo. Para o cristão, esse dia é um sinal, simultaneamente garantido e precário, de uma justiça e de um amor que venceram a morte. Se não somos cristãos ou se somos descrentes, conhecemos esse domingo precisamente nos mesmos termos. Para nós, é o dia da libertação da inumanidade e servidão. Esperamos soluções, sejam elas terapêuticas ou políticas, sociais ou messiânicas. Os contornos desse Domingo carregam o nome da esperança (não há palavra menos susceptível de desconstrução). Mas a nossa longa jornada é a de Sábado. Entre o sofrimento, a solidão e o indizível desperdício, por um lado, e o sonho da libertação e do renascimento por outro. Em face da tortura de uma criança ou da morte do amor que é Sexta-Feira, até a arte e a poesia mais sublimes se revelam vãs." Sim. É no Sábado Santo que os cristãos e, de certo modo, todos os seres humanos vivem: entre o horror de Sexta-Feira Santa e a esperança do Domingo pascal.
As razões da fé em Deus são essencialmente razões da esperança. Há um clamor que grita no mundo e vem das vítimas inocentes. Um número incontável de crianças, de mulheres, de homens, que sucumbiram à violência bruta, à crueldade inominável, para quem a vida nada foi senão horror, reclamam justiça. Há uma dívida inapagável para com elas, mas, sem Deus e a ressurreição dos mortos, quem paga essa dívida? Ou será que tudo - bem e mal, dignidade e indignidade, justiça e injustiça - se afunda no nada?
"O cristianismo tem a seu favor o imenso acerto de se apresentar como a tradição de um ser humano que enfrentou o mal com enorme dor, mas com a prevalência da esperança", reflectia o filósofo J. Gómez Caffarena. Na linha de Kant, que escreveu: "A balança da razão não é completamente imparcial: o braço que aponta "esperança do futuro" tem uma vantagem mecânica que faz com que mesmo razões leves que caem no seu respectivo prato levantem o outro braço que contém especulações em si de maior peso. Esta é a única inexactidão que eu não poderia e na realidade também não quero corrigir."
"Não é nenhuma estupidez nem loucura esperar": "O enigma que somos pode ter no Mistério para o qual abrem as religiões uma chave para uma esperança fundada", acrescentava Caffarena. Não só não é ilegítimo como é até razoável esperar. Mas a esperança não é resignada, quieta, passiva. Ela é constitutivamente activa, praxística na transformação para a bondade do mundo. Para que se cumpra o que escreveu Santo Agostinho: "Vive de tal modo que, quando morreres, não morras."