Crónica de Anselmo Borges
1. E pus-me a caminho de Lisboa. Com a única finalidade de prestar uma última homenagem ao colega e amigo José Policarpo, cardeal-patriarca emérito. Fomos colegas na Universidade Gregoriana, em Roma, e ficámos amigos e, quando um amigo se nos vai embora, precisamos de uma despedida.
Jazia dentro da urna fechada, no chão da sé catedral. Desde a sua morte que as palavras nunca mais pararam. E falou-se, falou-se, falou-se. E imagens e mais imagens sobre outras imagens. E talvez poucos se tenham ocupado com estar calados. Talvez precisemos tanto de falar porque temos medo do silêncio da morte. Os mortos não falam. Está ali, imenso, o silêncio que fala, a dizer o essencial. Mas quantos estão preparados para, num tempo de rebuliço, ouvir o silêncio?
Repetiu-se, e bem, que José Policarpo foi um intelectual, um homem de cultura, de inteligência superior. Por isso, várias vezes conversámos sobre o que agora ali estava: a morte e o seu impensável, que nos obrigam a pensar. Hoje, o pensamento é débil e banal, à tona das coisas, e porquê? A nossa é a primeira sociedade na história que teve de fazer da morte tabu. No entanto, é ela que põe a pensar até ao fundo, à ultimidade. A crise do nosso tempo, que é, antes de mais, uma crise de cultura, é a crise da morte e do seu tabu. Afinal, é o pensamento sadio da morte que nos coloca perante a distinção real do justo e do injusto, do que verdadeiramente vale e do que não vale. E até percebemos, bem lá no fundo, que somos mortais, logo, somos irmãos.
2. Desde cedo José Policarpo entendeu que a Igreja precisa de renovar-se, na linha do Concílio Vaticano II. Estar atenta aos "sinais dos tempos", tema da tese de doutoramento. E dialogar com todos, nomeadamente no mundo da cultura, dando razões da fé. E ser próximo daqueles e daquelas que estão nas margens, nas periferias existenciais, sociais e geográficas, como diz agora o Papa Francisco. Não ignorou os pobres e injustiçados. Permaneceu distante dos poderes, para poder manter a liberdade crítica da denúncia das injustiças e do anúncio de caminhos pelo pensar e a solidariedade.
Homem de convicções, afirmou-as sem medo. Por outro lado, teve o saber e a sabedoria de não criar rupturas, concretamente quando se tratou de questões ditas fracturantes, como o aborto e o casamento de pessoas do mesmo sexo. Afinal, a Igreja tem o direito e o dever de anunciar claramente a sua doutrina, mas José Policarpo sabia também que vivemos numa sociedade democrática e pluralista e as leis são votadas no Parlamento.
3. Um homem afável, embora haja quem diga que ficou um pouco amargo nos últimos tempos. Também terá tido as suas tristezas: por exemplo, nem sempre ter sido compreendido, ver o País a afundar-se. Amigo do seu amigo, gostava da família e apreciava as coisas boas da vida. Bem-disposto, contava estórias, tinha um humor fino. Movia-se à vontade dentro da Igreja e na sociedade. Honrou a Igreja e o País, tanto dentro como além-fronteiras. Fiel ao espírito conciliar, olhava para o futuro e deve ter tido grande alegria com a renovação que via através do Papa Francisco.
Falhas? Quem as não tem? A tentativa de ir por diante com uma televisão da Igreja foi um erro e, lamentavelmente, nunca pediu desculpa a pessoas modestas que meteram lá dinheiro, pensando que era para bem da Igreja e do Evangelho. Como teólogo, argumentou que não há razões teológicas que impeçam a ordenação das mulheres, mas, depois, chamado ao Vaticano, voltou atrás, autocensurando-se. Foi pena que, reitor e magno chanceler da Universidade Católica, não tenha conseguido fazer com que a orientação nos domínios da economia e da gestão se aproxime mais da doutrina social da Igreja.
4. Dizia o filósofo Ernst Bloch, o ateu religioso, que os mortos apenas levam consigo as boas obras e a música. As falhas também, digo eu.
José Policarpo partiu e, como todos, não deixou endereço. Mas ele acreditava, e eu também, que não morremos para o nada, mas para o mistério da vida plena de Deus, o Deus que é amor e misericórdia.