Crónica de Anselmo Borges
no Diário de Notícias de hoje
1. A exposição do cardeal-teólogo Walter Kasper na semana passada aos cardeais, reunidos em Roma para darem início à reflexão sobre a família no mundo actual e a pastoral familiar, foi publicamente aplaudida pelo Papa Francisco.
A intervenção não veio a público. Mas o cardeal já tinha expressado claramente o seu pensamento, concretamente sobre a admissão à comunhão dos divorciados que voltam a casar. Já em Dezembro tinha dito ao semanário Die Zeit que os divorciados recasados "terão em breve acesso novamente aos sacramentos". E, na véspera do debate no consistório dos cardeais, afirmou, aliás na linha de Francisco, que repete constantemente "Deus não se cansa de perdoar": "Todo o pecado pode ser perdoado. Também o divórcio. Esse é o ponto de partida. Alguém pode cair num buraco negro de que Deus o pode tirar." E insistiu: "O Papa convida-nos a ir às periferias, aos subúrbios da existência humana, para sermos como o bom samaritano que ajuda e não como o sacerdote e o levita do Evangelho que têm respostas preparadas para tudo. A Igreja deve ser o hospital de campanha que cura todas as feridas." A doutrina "não é uma lagoa estancada. É uma viagem, um ponto de partida, não de chegada, e a tarefa da Igreja é ir ao encontro das pessoas". Não se pode "defraudar as expectativas, especialmente no referente à família".
Está, pois, aberto o caminho para a admissão à comunhão dos divorciados que se voltam a casar. A resposta definitiva virá dentro de dois anos, no Sínodo de 2015.
2. Nem todos estão de acordo. O cardeal G. Müller, prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé, por exemplo, declarou: permitir "o acesso dos divorciados à Eucaristia causaria confusão nos fiéis quanto à doutrina da Igreja".
Então, há quem proponha como solução sobretudo a avaliação das condições de validade dos casamentos e a aceleração da declaração de nulidade. Ora, certamente é urgente acelerar e agilizar os processos de nulidade, mas pensar que essa é a via pura e simples de solução é perigosíssimo. Em primeiro lugar, porque daria azo a facilmente desqualificar a liberdade e a responsabilidade dos casais. Depois, porque o que acontece normalmente é que as pessoas partem de boa-fé e vontade para o ideal de um casamento estável, fiel e feliz, mas, depois, a vida é o que é, e por culpa de um ou do outro, por culpa dos dois ou por culpa de nenhum, a vida em comum já não é mais suportável, de tal modo que, em certas circunstâncias, o divórcio não só é legítimo mas necessário. A identidade humana é narrativa e o tempo tudo corrói. O grande Pascal disse-o de modo inexcedível nos Pensamentos: "O tempo cura as dores e as querelas, pois mudamos: já não somos a mesma pessoa. Ele já não ama esta pessoa que amava há dez anos. É isso: ela já não é a mesma, e ele também não. Ele era jovem, ela também; ela agora é totalmente diferente (tout autre). Talvez ele ainda a amasse, se ela fosse como era." E não terão o direito a recomeçar a vida e outro amor, na dignidade livre e na liberdade com dignidade?
3. Olhei para a imagem daqueles 150 cardeais em Roma e perguntei a mim mesmo: vão ser estes homens, só homens, solteiros e alguns com idade avançada, que, por mais dignos e competentes que sejam, vão, sozinhos, decidir da família do futuro, da moral sexual e da pastoral familiar? E aplaudi com as duas mãos a pergunta que organizações cristãs de todo o mundo fizeram ao Papa e ao G8 cardinalício: "Que seria um "Sínodo da Família" sem incluir aqueles que vivem numa família?" Evidentemente, um Sínodo autêntico sobre a família requer a participação de mulheres e homens comprometidos, vindos de todas as partes.
P. S. Depois dos descaminhos da imprensa no ensaio de nomes, o Papa Francisco nomeou finalmente o novo bispo do Porto: António Francisco dos Santos, até agora bispo de Aveiro. Homem simples, humilde e sábio, vem como pastor para uma diocese tão importante quanto difícil. Também se chama Francisco, e, neste caso, o nome não é mera coincidência.
Por decisão pessoal, o autor do texto não escreve segundo o novo Acordo Ortográfico.